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Prova da OAB! Dworkin! Dicas para concurso! Porque o Senai é melhor!

Por Lenio Luiz Streck
Os títulos alterativos poderiam ser: “Dworkin caiu na OAB? Ótimo: Vamos acabar com Dworkin, criminosamente”. Ou:  “Quer simplificar? Ok. Mas isso é criminoso”! Ou “porque o direito é o locus privilegiado da mediocridade”. Ou, ainda: “Por que não transformamos logo as faculdades em um curso tipo ferramenteiro Senai”? Ou “Por que agentes públicos podem se arvorar no ‘direito de dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa’”? Ou “Por que transformamos o Direito em um misto de anorexia e bulimia de conhecimentos? ”
História verídica: há alguns dias, eu estava em casa, lendo, quando recebi uma mensagem, via WhatsApp, por volta das 23h. Era o Francisco Motta, querido amigo e parceiro, professor do mestrado da FMP e promotor de Justiça, que me encaminhava um link de um vídeo do YouTube, com a observação “troço irritante” (sic). Fui ver do que tratava. Chico é comedido. Não me mandaria algo sem relevância a essa hora da noite.
Vi. Francisco tinha razão. De fato, era um troço irritante. Um professor (acho que é de cursinho), se propunha a dar dicas de Filosofia do Direito para o exame da OAB, ou algo assim. Vou chamá-lo de Ronald Gotcha (Ronaldo Te Peguei). Não declinarei o nome verdadeiro. Para poupá-lo. O que importa não é o personagem, mas, sim, o crime. O texto está degravado e a cópia do vídeo está armazenada. A dica (sic) em questão tratava do pensamento de Dworkin. A tapas e pontapés. Chutando de bico. Enquanto eu assistia à, digamos assim, aula, recebi outra mensagem de Francisco: Se alguém do Direito “quer simplificar? Ok. Mas isso daí é criminoso”. Bingo! Binguíssimo, Chico Motta.
Depois de ver e ouvir, pedi à minha equipe do Dasein que degravasse o conteúdo da fala do vivente e dedicar a ele (não bem a ele, que não conheço, mas aos que, como ele, se propõem a simplificar-facilitar, para um público determinado, temas importantes) o Senso Incomum de hoje. Apenas para demonstrar o risco a que está exposto esse bravo público concurseiro (ou de graduação), ou de candidatos à aprovação no exame da OAB, que não tem tempo de procurar fontes confiáveis.
Qual o busílis? Simples. Dworkin caiu na OAB. É sério. Parece que no XIII exame da OAB (vejam o post scriptum: caiu de novo) apareceu uma questão tratando do caso Riggs v. Palmer. Vocês, que me leem, sabem qual é (e teriam, vejam vocês, acertado a tal questão). Aquele do sujeito que mata o avô para ficar com a herança. Então, se caiu na OAB, é porque deve ser importante. E o professor R. Gotcha – esse do YouTube – colheu o ensejo para dividir, com o mundo, sua – particularíssima – leitura da obra de Dworkin. Que lástima. Aliás, quando o STF acabou com a presunção da inocência, um professor de graduação e cursinho do Rio de Janeiro disse que a culpa era de Dworkin – leiam aqui (dou uma palhinha: “Mais uma vez prevaleceu a filosofia de Dworkin no que tange a aplicação de princípios gerais* de direito e da vontade da sociedade**. Neste sentido, lecionava Dworkin que o direito deve ser visto como um sistema aberto de normas*** que deve ser interpretado a luz dos princípios gerais do direito**** e atendendo aos anseios da sociedade*****” (cada asterisco corresponde a um erro; em quatro linhas, o post do professor de direito constitucional contém cinco erros).
Sigo. Para corrigir o professor R. Gotcha. Com todo o carinho. Preocupado com os alunos. As vítimas. Já fiz isso aqui em outras oportunidades. No caso, tenho a obrigação cívica de exemplar o professor. Ele é responsável por colocar esse tipo de coisa em público. E deve pagar o preço. Cada um é responsável pelo que escreve. Na forma da lei e do decreto que regulamenta os textos publicados nas redes sociais. E revogam-se as disposições em contrário.
Vamos ver. Vou pegar somente o suco do que disse Gotcha. Diz ele que Dworkin “é muito importante”, porque “ele coloca os princípios no mesmo patamar das regras”. Que coisa, não?  Confesso que não entendi bem o que o professor tinha em mente ao fazer essa afirmação. Se ele quis dizer que princípios e regras são normas, bem. Se ele, no entanto, pretendeu equipará-las em importância (“no mesmo patamar”), temos aí um bom debate a fazer. Dwokin tornou célebre, por exemplo, a tese de que toda a decisão jurídica deve ser gerada por princípios. Por aí já se vê que princípios não podem estar equiparados a regras. Há, na verdade, uma diferença.
Mas, esperem: deixem que o professor nos explique: “as regras são consideradas para o autor mandados, mandados de determinação”“já em relação aos princípios, nós temos um mandado de otimização”. Ai (onomatopeia de dor), a minha LEER (Lesão por Esforço Epistêmico Repetitivo) se manifesta… Para Dworkin, queridos, princípios são argumentos de natureza moral, empregados em favor de direitos. Não é de Dworkin a tese de que são “mandados de otimização”. Isso é coisa de Alexy – outro autor pouco e mal lido no Brasil. Apples and oranges.
De fato, nosso professor de cursinho (e, se está na graduação de alguma faculdade… bom deixa prá lá) está mais perdido do que cego em tiroteio, como se diz aqui na minha terra gauche. Isso fica claro quando ele engata uma segunda marcha e tasca um “as regras são aplicadas por subsunção”, ao passo que, no caso dos princípios, “fala-se em ponderação de interesses”. Descupem-me os leitores e Gotcha: isso é criminoso. Não sei de que Dworkin ele está falando. De fato, na década de sessenta, Dworkin concebeu a aplicação de regras na all or nothing fashion, enquanto destacava que os princípios tinham, mesmo, uma dimensão de peso ou importância. Essa tese foi reformulada, diga-se, ao longo de seu trabalho, mas isso é tema para outra coluna (aliás, já escrevi sobre isso em vários livros e textos). De todo modo, essa conversa de subsunção e de ponderação de interesses está mais para Alexy do que para Dworkin, como sabe (deveria saber) toda a gente. Pior: “interesses” é mesmo de Phillip Heck, de 1905. Nosso professor está, de fato, fora de foco.
Agora, nem Alexy, nem Dworkin, nem ninguém que eu tenha lido, concluíram que princípios se aplicam segundo a técnica do mais ou menos. Técnica do mais ou menos? É, explica-nos o professor. É que, “em relação aos princípios, nós podemos ter mais interesses envolvidos, ou até mesmo, menos interesses envolvidos e de toda a forma haverá a conclusão, haverá a consequência jurídica”. Não entendi. Mas estou preocupado, já que esse seria “um posicionamento bastante moderno”. Tenho de me atualizar. Que coisa, não?
Bem, acho que chega. Haveria mais, claro, a escrever (o professor segue a sua aula com uma curiosa análise do caso Riggs e da tal questão que caiu na prova da OAB), mas eu já disse o suficiente, creio, para estabelecer o meu point. Paro por aqui para não piorar a situação do professor.
Saibam que não me dá maior prazer escrever textos desse tipo. Ok, às vezes é divertido, e tal. Mas não é o que me leva a escrever. É mais o sentimento de dever, mesmo. Fico incomodado, e minha crítica é de todos conhecida, com essa verdadeira subversão do ensino e do aprendizado. Vejam o paradoxo: não é bom que tenha caído a tal questão envolvendo a obra de Dworkin na prova da OAB. É claro que é! Mas isso deveria servir para despertar a atenção de professores e alunos para temas e autores reflexivos, complexos, que, bem entendidos, verdadeiramente transformam o modo de ver o Direito.
Mas não! Logo surge alguém para “simplificar”, “facilitar”, “mastigar”, encobrindo o que há de importante e potencialmente virtuoso da coisa. Isso está se tornando, mais do irritante, criminoso. Pensam que o Direito é uma várzea epistêmica. Isso se repete cotidianamente. Dissertações, teses, livros, aulas gravadas. E a coisa vai piorando. Cursinhos e salas de aula de graduação reproduzindo simplificações e facilidades. Equívocos. Juízes e membros do ministério público pensando que o Direito é uma mera técnica ou ferramenta, como se fosse uma picareta. Francisco Borges Motta tem razão. Está ficando irritante. Trata-se de improbidade epistêmica, principalmente se o que quem está dizendo gasta dinheiro público.
Olha, quer simplificar, resumir? Ok. Eu entendo. Não é razoável exigir de um bacharelando uma leitura extensiva de uma obra complexa como a de Dworkin. Mas então que se limite ao texto e a generalidades corretas (sei lá, algo do tipo “Dworkin dá grande importância aos princípios jurídicos”). Não me venha com informações simples e… erradas. Poupem-nos da técnica do mais ou menos. Será pedir demais? Provavelmente.
Aliás, numa palavra final: não é de surpreender que esse tipo de coisa — “estudada” nas salas de aula e reproduzida nos cursinhos (alguns fazem propaganda tipo “seja um herói”) de um país que não tem quadros para atender a demanda do ensino – gere derivativos vulgateados de todo tipo como: a) a transformação dos concursos públicos em quiz shows, b) o uso de coisas como a teoria da graxa, c) demonicidio, d) teses como: d’)“desencarceramento mata” (sic), d’’) “bandidolatria” (sic), d’’’) “direitos humanos só para humanos direitos” (muitas dessas coisas patéticas são, por vezes, escritas a partir de financiamento público, próprio de um país patrimonialista e extrativista), e) além de bobagens berradas em sala sobre Kelsen, Dworkin, Alexy, etc., por gotchas de todo tipo país a fora, propagando uso de teses exóticas lidas de orelha e aplicadas à fórceps no combalido direito processual…a ponto de já terem acabado com a teoria da prova.  Isso sem contar as patacoadas como “o juiz boca da lei morreu e agora é a vez dos juiz dos valores e dos princípios”… Ou “o pós-positivismo é quando o juiz vai além da letra da lei”… Coisas criminosas, mesmo. E quando ditas em lugares que lidam com dinheiro público (ou financiadas, de algum modo, pela bolsa da combalida viúva), é improbidade epistêmica, se me entendem a ironia.
Enfim, transformamos o Direito em um misto de anorexia e bulimia de conhecimentos. É de chorar. Fossem os juristas médicos, os pacientes morreriam de infecção, pela falta da invenção da penicilina jurídica. Até onde vamos? Quem segura essa gente? O bonito é quando esse tipo de coisa aparece postada no face e a galera curte, comentando: “monstro”, “só fera”, “eu chego lá”…! Pois é. Acho que, com essa literatura facilitada, simplificada, prêt-à-porter, nem chegam lá. Já chegaram! O Haiti é aqui.
Post scriptum 1: a propósito, o Exame de Ordem do dia 17 de julho 2017 perguntou de novo sobre Dworkin, desta vez invocando o livro A Virtude Soberana. É bom cobrar Dworkin? É. Mas quem, da graduação, teria lido o livro, a não ser um pequeno resumo dado por algum cursinho ou visto em dicas tipo a do texto acima? Se é para cobrar uma teoria política sobre a igualdade (sim, é disso que trata o livro), que se cobre, sei lá, o inspirador de Dworkin acerca do assunto, John Rawls. Ou, se quiser investir em Dworkin, que se transcreva uma passagem mais elucidativa do que essa que integra a questão. Há várias outras, mais claras. Do jeito que foi indagada, pareceu mais pega-ratão do que útil. Ora, por que não perguntam sobre coerência e integridade, cerne da teoria de Dworkin, tese, aliás, que está incorporada – não se os arguidores da FGV sabem – no artigo 926 do CPC/2015. Aliás, aplicadas as teses do Virtude Soberana, não sobra decisão ativista em Pindorama. No fundo, seria bom que os juízes lessem o Virtude Soberana. De novo: a prova da Ordem infelizmente exige, em vez de expertise, esperteza.
Post scriptum 2. Já tinha encerrado a coluna quando recebi um link (por isonomia com o Gotcha, também vou poupar o personagem e ficar só com o crime) em que uma professora de cursinho, lecionando direito constitucional, criou uma “brilhante” metáfora para explicar o que é emenda constitucional. Segundo ela, PEC é como silicone. O produto original (mulher) sofre alterações pela implantação de silicone. Por consequência, uma emenda… altera a CF. Bingo! Porque ninguém pensou nisso antes?  Logo, ela deve lançar o “princípio do siliconamento constitucional”. É o que falei acima. Não há limites.
Meus caros leitores de todo Pindorama: se para explicar o que é uma PEC a professora tem de apelar a uma metaforazinha desse jaez, Houston, Houston, temos um ou dois problemas: ou a professora precisa da metáfora para entender o tema ou os alunos é que necessitam de uma metáfora desse tipo para entenderem o que é uma PEC. Em qualquer caso, Houston, Houston… Sem mais palavras. Logo, vão perguntar nas provas: O que é um PEC? E os alunos responderão: é a aplicação do silicone no texto. Um texto bombado. Isso: PEC é a bombação da Constituição. E novas metáforas surgirão, como “de quantos litros foi a PEC?” Gotcha!
Fonte: www.conjur.com.br

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