Quando o juiz manipula a audiência de custódia – Por Alexandre Morais da Rosa
Por Alexandre Morais da Rosa – 20/12/2016
A implementação da audiência de custódia, mecanismo de garantia da apresentação física do conduzido à autoridade judiciária para fins de verificação da a) legalidade da prisão, b) ocorrência de abusos pela autoridade policial, c) análise da custódia cautelar e/ou aplicação das medidas cautelares, está sujeita à má compreensão de certa parcela da magistratura[1]. Alguns de má vontade, e outros por má-fé, muito em decorrência da mentalidade inquisitória.
Parcela da magistratura está de má vontade na realização de ato exigido pela normativa internacional e, para tanto, tem se utilizado da audiência de custódia para finalidades em desconformidade com sua razão de ser.
A audiência de custódia é ato individual, feita para aferir, em cada condução, os requisitos de validade e, também, diante da intervenção do Ministério Público e do defensor/advogado, da necessidade, da adequação e da proporcionalidade de sua manutenção. Proporciona melhor qualidade e quantidade de informação capaz de tornar, tanto a decisão que decreta a preventiva, como a decisão que solta o agente, mais próxima da realidade e do impacto humano proporcionado pelo contato pessoal do conduzido. Logo, audiências coletivas, com diversos acusados em conjunto, violam a individualização do caso penal e devem ser anuladas.
Do mesmo modo, a insistência na permanência de acusados algemados, algumas vezes uns aos outros, todos assistindo a audiências coletivas, viola a Súmula Vinculante 11 do Supremo Tribunal Federal e podem ser anuladas por força de reclamação junto ao STF.
Além dessas questões, surgem ainda duas mazelas.
A primeira é a transformação do crime de ação pública incondicionada de tortura (Lei 9.455/97) em simples lesões corporais, indagando-se sobre o interesse do conduzido em representar contra o agente. Quando realizam tal conduta, magistrados e membros do Ministério Público podem estar incidindo na conduta criminal do parágrafo 2º, do artigo 1º, da Lei 9.455/97, por não exercerem a função de garante. A omissão pode ser criminosa.
A segunda é a manipulação da finalidade da audiência, fazendo verdadeiro interrogatório, sem acusação formalizada. Confundem o ato de audiência de custódia com a produção antecipada de provas, em que se busca, não raras vezes, a confissão do conduzido. É a inversão da lógica do devido processo legal. Munidos de mentalidade inquisitória, buscam facilitar a instrução e eventual condenação, mediante perguntas sobre a conduta e com sorriso nos lábios. Nesse caso, o material da audiência viola diversas garantias constitucionais e deveria ser declarado nulo, com a exclusão do ato, inclusive física.
Cabe aos operadores do Direito do país lutar pela implementação da audiência de custódia em patamares democráticos, convencendo parcela da magistratura da relevância do ato.
A postura autoritária do magistrado implicará, em breve (assim esperamos), decretações de nulidade e, por via de consequência, maior ineficiência do sistema penal. A ausência de cultura democrática servirá, paradoxalmente, para nulificar atos judiciais por ausência de conformidade legal, colocando muitos conduzidos que poderiam ficar presos — já que não defendemos soltar todos — liberados pela má vontade de parcela da magistratura que se nega a cumprir regras.
As regras do jogo mudaram. Não se pode ficar como adolescentes revoltados negando-se a cumprir normas jurídicas declaradas constitucionais pelo STF. Podemos ou não concordar. Deixar de cumprir não é algo que se espera de agentes públicos que fizeram o juramento de cumprir a Constituição e as leis em vigor. A arrogância e a má vontade corroboram o quadro do paroxismo do sistema penal.
[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2016; PAIVA, Caio. Audiência de Custódia. Florianópolis: Empório do Direito, 2015; LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2016; TÓPOR, Klayton Augusto Martins; NUNES, Andréia Ribeiro. Audiência de custódia: controle jurisdicional da prisão em flagrante. Florianópolis: Empório do Direito, 2015; OLIVEIRA, Gisele Souza de; SOUZA, Sérgio Ricardo de; BRASIL JUNIOR, Samuel Meira; SILVA, Wilian. Audiência de Custódia: Dignidade Humana, controle de convencionalidade, prisão cautelar e outras alternativas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015
Publicado anteriormente em http://www.conjur.com.br/2016-jul-08/limite-penal-quando-juiz-manipula-audiencia-custodia
Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR).Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC). Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com / Facebook aqui.
Fonte:http://emporiododireito.com.br/