QUEBRA DE TRADIÇÕES – 3ª Turma do STJ define o ilícito de ‘assédio processual’
O
ajuizamento de ações sucessivas e sem fundamento para atingir objetivos
maliciosos é “assédio processual”. Foi como a 3ª Turma do Superior
Tribunal de Justiça definiu a prática de abusar dos direitos
fundamentais de acesso à Justiça e ampla defesa “por mero capricho, por
espírito emulativo, por dolo ou que, em ações ou incidentes temerários,
veiculem pretensões ou defesas frívolas, aptas a tornar o processo um
simulacro de processo”.
A
decisão, do dia 17 de outubro, foi de condenar uma família a pagar
indenização de R$ 100 mil a cada um dos autores da ação que resultou no
processo, por assédio processual. Também foram arbitrados honorários de
sucumbência de 10% sobre o valor total da causa. Do registro do STJ,
constam dez autores. O valor total ainda não foi calculado.
Ficou
definida a seguinte tese: “O ajuizamento de sucessivas ações judiciais,
desprovidas de fundamentação idônea e intentadas com propósito doloso,
pode configurar ato ilícito de abuso do direito de ação ou de defesa, o
denominado assédio processual”.
A
tese foi desenvolvida no caso pela ministra Nancy Andrighi, que, em
voto-vista, divergiu do relator, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino.
Nancy foi acompanhada pelos ministros Marco Aurélio Bellizze, Ricardo
Villas Bôas Cueva e Moura Ribeiro.
Sanseverino
havia votado para negar o recurso, por entender que não havia nada a
reformar na decisão da origem e porque o abuso processual se apura no
próprio processo, conforme manda o parágrafo 3º do artigo 81 do Código
de Processo Civil.
De
acordo com Sanseverino, portanto, o abuso se daria dentro de uma
demanda específica. Por exemplo, por meio do ajuizamento de diversos
embargos de declaração ou do peticionamento sucessivo de documentos
extensos demais para ser lidos em tempo hábil.
Mas,
para a ministra Nancy, o direito processual precisa evoluir e o abuso
do direito de ação não pode ficar restrito ao que está escrito na lei.
“Embora não seja da tradição do direito processual civil brasileiro, é
admissível o reconhecimento da existência do ato ilícito de abuso
processual, tais como o abuso do direito fundamental de ação ou de
defesa, não apenas em hipóteses previamente tipificadas na legislação,
mas também quando configurada a má utilização dos direitos fundamentais
processuais”, anotou a ministra, na ementa do acórdão.
Segundo
ela, a tradição brasileira é de considerar abuso processual o que está
definido como litigância de má-fé nos artigos 79, 80 e 81 do CPC. Os
dispositivos dizem quais são as obrigações das partes no processo e
quais são as atitudes que podem levar o juiz a condenar alguém por
litigância de má-fé.
No
entanto, argumenta a ministra, nem sempre as coisas são claras assim. É
preciso definir, além dos abusos no decorrer do processo, o assédio
processual.
“O
ardil, não raro, é camuflado e obscuro, de modo a embaralhar as vistas
de quem precisa encontrá-lo. O chicaneiro nunca se apresenta como tal,
mas, ao revés, age alegadamente sob o manto dos princípios mais caros,
como o acesso à justiça, o devido processo legal e a ampla defesa, para
cometer e ocultar as suas vilezas. O abuso se configura não pelo que se
revela, mas pelo que se esconde”, afirma. “É por isso que é preciso
repensar o processo à luz dos mais basilares cânones do próprio
direito.”
A
tese da ministra foi uma solução para o caso concreto. O recurso chegou
ao STJ a partir de uma disputa pela propriedade de 1,5 mil hectares de
terra na Bahia. A família que ajuizou a primeira ação, em 1988, se
baseou, segundo a ministra, numa procuração já reconhecidamente falsa
datada de 1970. A falsidade do documento foi declarada em 1983, quando a
família que é realmente dona da terra buscou reaver o imóvel pela via
administrativa.
A
partir de 88, entretanto, conta Nancy, a família que tentava se assumir
dona da terra ajuizou diversas ações, mesmo sabendo não ter razão. E
entre 1995 e 2011, ocupou o terreno e exerceu atividades agrícolas lá,
desobedecendo sentença transitada em julgado. E mesmo em 2011, quando
veio a ordem definitiva de que a família se retirasse, foram ajuizadas
três ações diferentes com o mesmo teor, em foros diferentes.
“O
abuso do direito fundamental de acesso à justiça em que incorreram os
recorridos não se materializou em cada um dos atos processuais
individualmente considerados, mas, ao revés, concretizou-se em uma série
de atos concertados, em sucessivas pretensões desprovidas de
fundamentação e em quase uma dezena de demandas frívolas e temerárias”,
resume Nancy, em seu voto.
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REsp 1.817.845
Pedro Canário – Conjur