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RASTROS DA HISTÓRIA – Direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição, entende Toffoli

A ideia de um direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição Federal, conforme entendimento do ministro Dias Toffoli, relator do recurso extraordinário que discute a matéria no Supremo Tribunal Federal.

O recurso começou a ser analisado nesta quarta-feira (3/2), com sustentações orais e amici curiae. Só o voto do relator tomou uma sessão e meia, demonstrando a extensão e a necessidade de aprofundamento do tema.

Nesta quinta-feira (4/1), Toffoli caracterizou como direito ao esquecimento a “pretensão apta a impedir a divulgação, seja em plataformas tradicionais ou virtual, de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos, mas que, em razão da passagem do tempo, teriam se tornado descontextualizados ou destituídos de interesse público relevante”.

No Brasil, esse direito ao esquecimento não consta de nenhuma lei — foi criado por juízes. Foi o mote seguido por Toffoli em seu voto. O que existe no ordenamento jurídico, de acordo com o ministro, “são expressas e pontuais previsões em que se admite, sob condições específicas, o decurso do tempo como razão para supressão de dados ou informações”. Para ele, tem potencial interesse público “o que possa ser licitamente obtido e divulgado”.

De acordo com o ministro, a conclusão do julgamento não pode ser generalizada para outras áreas que já tenham suas regras específicas, como a recente Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e o Marco Civil da Internet.

O relator destacou como um dos parâmetros essenciais para delimitar o alcance ao direito ao esquecimento é a licitude da informação. Não basta, porém, a licitude da informação para caracterizar o pretenso direito ao esquecimento, defendeu o ministro.

“No cerne da alegação em favor de um direito a esquecer fatos passados está a compreensão de que não obstante se trate de fatos verdadeiros, sua utilização temporalmente distante da sua ocorrência os tornaria descontextualizados. É nesse aspecto que surge o segundo elemento definidor do direito ao esquecimento: o decurso do tempo”, explicou.

Toffoli abordou a instabilidade trazida com as rápidas transformações da sociedade e afirmou que a LGPD “pretendeu cercar os dados de ampla proteção, viabilizando meios para eventuais correções que se façam necessárias”. Mas “não trouxe um direito ao indivíduo de se opor a publicações nas quais dados licitamente obtidos e tratados tenham constado”.

O ministro também defendeu que a “manifestação do pensamento, por mais relevante que inegavelmente seja, não deve respaldar a alimentação do ódio, da intolerância e da desinformação”.

“Essas situações representam o exercício abusivo desse direito, por atentarem sobretudo contra o princípio democrático, que compreende o ‘equilíbrio dinâmico’ entre as opiniões contrárias, o pluralismo, o respeito às diferenças e a tolerância”, criticou.

Repercussão geral
Toffoli sugeriu a seguinte tese com repercussão geral: “É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais”.

“Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais — especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral — e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível”.

Caso concreto
O recurso chegou ao Supremo ajuizado pelos irmãos de Aída Curi, vítima de um crime de grande repercussão praticado nos anos 1950 no Rio de Janeiro. Eles buscam reparação da TV Globo pela reconstituição do caso no programa televisivo Linha Direta sem a autorização da família. O programa foi exibido nos anos 2000.

Os irmãos de Aída Curi questionam a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que entendeu que a Constituição Federal garante a livre expressão de comunicação, independentemente de censura ou licença.

Os desembargadores definiram que a obrigação de indenizar ocorre apenas quando o uso da imagem ou de informações atingirem a honra da pessoa retratada e tiverem fins comerciais. Ainda segundo o TJ-RJ, a Globo cumpriu sua função social de informar, alertar e abrir o debate sobre o caso.

No Supremo, os ministros reconheceram a repercussão geral da matéria em junho de 2017. Nesta quinta, Toffoli votou para negar o recurso e a reparação pedida. “”Casos como o de Aída Curi, Ângela Diniz, Daniella Perez, Sandra Gomide, Eloá Pimentel, Marielle Franco e, mais recentemente, da juíza Viviane Vieira, entre tantos outros, não podem e não devem ser esquecidos”, afirmou.

O ministro Luís Roberto Barroso declarou suspeição e não participará do julgamento.

Direito Comparado
Em seu voto, Toffoli traçou um panorama histórico sobre como outros países lidaram com a questão. Para tanto, além de mencionar jurisprudência francesa, fez referência a decisões da Corte Constitucional Alemã. Citou dois casos celébres: o Lebach e o Lebach II, fazendo referência a texto publicado na ConJur por Otavio Luiz Rodrigues Jr., conselheiro do CNMP, professor da USP e que assina a coluna “Direito Comparado“.

Conforme narra Rodrigues Jr., o caso Lebach se refere ao assassino de quatro soldados do Exército da República Federal da Alemanha. Pouco antes de sua libertação, o condenado “ingressou com uma ação para impedir a difusão de um documentário sobre o crime”. Mas, após perder
instâncias ordinárias, “obteve a proteção requerida no Tribunal
Constitucional Federal”, diz Rodrigues Jr.

Para Toffoli, o caso Lebach, apesar da decisão que proibiu a exibição do documentário, se refere não exatamente a direito ao esquecimento, mas sim à proteção da personalidade do condenado: “ante a ausência de contemporaneidade dos fatos, a inexistência de interesse, àquele tempo, no reavivamento do caso, com a identificação do condenado, e o estímulo à ressocialização”.

No caso Lebach II, segundo Rodrigues Jr., houve uma revisitação do tema e o o Tribunal Constitucional Federal chegou a solução distinta.

“Em 1996, uma televisão alemã produziu um a série sobre crimes que entraram para a História. O crime ocorrido no arsenal militar de Lebach, com o assassínio dos quatro militares da Bundeswehr seria objeto de um dos programas da série televisiva. Diferentemente do que ocorreu na década de 1970, com o programa da ZDF, os produtores da SAT 1 (canal responsável pela série intitulada Verbrechen, die Geschichte machten) mudaram os nomes de algumas das pessoas envolvidas e suas imagens não foram exibidas. Além disso, há comentários explicativos do ex-chefe de Polícia de Munique”, explica.

“A distinção entre os casos — explica Rodrigues, com base nos
fundamentos utilizados pelo Tribunal — estaria em que, no programa da
SAT 1 (Lebach II), não haveria o mesmo ‘nível de interferência no direito
ao desenvolvimento da personalidade dos autores da reclamação
constitucional’, pois já havia se passado mais de 30 anos da ocorrência do crime, de modo que os riscos para a ressocialização teriam sido bastante minorados”, relatou Toffoli em seu voto.

Também em comentário enviado à ConJur, o professor Tércio Sampaio Ferraz ressaltou a importância do julgamento e elogiou o ministro Dias Toffoli. “Ser relator de uma ação como essa é uma missão quase que divina. Com efeito, é preciso penetrar no âmago da questão que envolve, não raro, dores e tristezas de um lado, e responsabilidade histórica, de outro. O ministro Toffoli, estudando o assunto com sensibilidade, não poderia ter sido mais feliz em seu voto. Com efeito, cumpriu o mister de ser um Relator (com erre maiúsculo mesmo) com extrema competência. A história não pode ser apagada e o voto do ministro é daqueles que entrará para a história.”

Clique aqui para ler o voto do relator
RE 1.010.606

Conjur




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