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Revitimização, o direito ao contraditório e a ampla defesa

Por Marcelo Bareato*

Com o passar dos tempos, o direito e seus aplicadores tem demonstrado uma certa fadiga no tocante a entregar ao cidadão, seu destinatário final, a atualização, o dinamismo e o respeito aos princípios básicos, que possibilitam conferir a credibilidade necessária a cada ato.

Não por menos, nosso tema de hoje busca tratar da necessidade de criar uma norma para resguardar a pessoa, vítima de violência de gênero, mas também possibilitar àquele que está sendo acusado da prática dessa violência, meios eficazes para se defender e mostrar ao julgador que existe uma segunda versão que deve ser levada em consideração na hora da formação da culpa ou da exclusão dela.

Dito isso, comecemos com a ideia de que o conceito de revitimização não é algo novo, como alguns pensam. Trata-se de um processo no qual a vítima experimenta um sofrimento contínuo e repetitivo. Nele a vítima, mesmo cessadas as agressões, revive a violência várias vezes, suscitando memórias nefastas, proporcionadas pelos órgãos que deveriam zelar por sua segurança e incolumidade.

Em termos práticos, é um conceito que tem sua origem junto a concepção de Estado Moderno, surgida após a Revolução Francesa, quando o Estado passa a ter a obrigatoriedade de normatizar a vida das pessoas no seio familiar e, porque não dizer, do próprio indivíduo dentro da sociedade, estabelecendo direito e deveres.

Para a criminologia, por exemplo, trata-se de uma série de atos e questionamentos endereçados às vítimas de violência de gênero, que causam constrangimentos e, por vezes, provocam a desistência da vítima em denunciar o ocorrido e prosseguir com o processo contra o agressor (vitimização secundária).

Não seria, pois, incorreto, dizer que a vitimização primária corresponde ao impacto causado pelo crime na vida daquele que experimenta a agressão, enquanto a vitimização secundária seria o impacto que o sistema de justiça criminal, através de suas investigações e processos malconduzidos, causam na vida da vítima.

Exatamente por isso, em 31 de março de 2022, através da Lei n.º 14.321, pela primeira vez, tipificamos o crime de violência institucional.

Submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade: I – a situação de violência; ou II – outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. 1º Se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena aumentada de 2/3 (dois terços). 2º Se o agente público intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena em dobro.

A necessária previsão legal se deu por força do julgamento que estarreceu todos os cidadãos, frente o caso Mariana Ferrer, suposta vítima de um caso de estupro, onde juiz, promotor e advogado de defesa ridicularizaram Mariana, submetendo-a a uma das paginas mais tristes de nosso direito.

Percebam! Estamos, no caso citado, diante de um procedimento indubitavelmente machista, que visava desacreditar a vítima para transformá-la em culpada por qualquer eventual agressão que tivesse sofrido, afinal, seria ela, para efeito de julgamento, a provocadora da situação. Imperdoável por todos aqueles que participaram de tamanha crueldade.

Contudo, é necessário destacar que há uma crescente onda em nosso judiciário, depois da entrada em vigor da referida lei, no sentido de cercear a atuação da defesa, condenando todos aqueles que forem denunciados por crimes que envolvam violência de gênero, confundindo, propositalmente, o conceito de revitimização, com o fim de macular o devido processo legal, jogando uma cortina de fumaça sobre a violência institucional e impedindo que se estabeleça a verdade sobre os fatos, punindo apenas a advocacia, mas não as instituições responsáveis por fiscalizar e aplicar a lei.

E, não nos enganemos, a Lei é necessária, mas não pode ser banalizada e desvirtuada em seu conteúdo, para tornar um juiz bem quisto aos olhos da imprensa e da população onde atua, por ser o que mais condena. Ou seja, como o próprio texto faz referência, o que se visa proteger é a ação de Submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade”; o que, de forma alguma quer dizer, impedir que o advogado faça o seu trabalho.

Nesse passo, vários erros são perceptíveis em audiências dessa natureza, como por exemplo: 1) obrigar a vítima a presenciar todo o processo e participar dele, para além da sua oitiva; 2) impedir que as testemunhas respondam as perguntas feitas pela defesa, ao pretexto de que a vítima se faz presente na sala, depois de sua oitiva; 3) manter a vítima na sala, por todo tempo da instrução para que possa formular perguntas indiretamente as testemunhas, seja através do Representante Ministerial, seja através de um Assistente de Acusação.

Mesmo porque, convenhamos, se de fato existe a perspectiva de que alguém seja a vítima, é estranho que queira, ou lhe seja permitido estar em sala, depois de seu depoimento, visto que, nos casos abrangidos por violência de gênero, já é por demais desgastante estar em juízo e falar sobre o ocorrido, quanto mais permanecer, ver o suposto agressor e escutar os depoimentos das testemunhas que lhe servirão de arrimo. E, neste ponto, repousa a revitimização, ou a forçosa condição de, após a violência física, reviver, sistematicamente, todas as memórias ruins que o fato lhe causou.

Assim, percebemos que são coisas distintas, impedir a revitimização e possibilitar que se estabeleça o contraditório e a ampla defesa, embora todas estejam no contexto do devido processo legal. A primeira não exclui a obediência as demais, mesmo porque, um processo que se entenda legítimo, respeita os princípios norteadores do direito, traz segurança jurídica a quem dele (processo) precisa e mostra a sociedade que existe uma norma que deverá ser seguida, sob pena de severas consequências.

Destarte, é obrigação do juízo moderar as perguntas que são feitas a vítima, não permitindo que se instaure uma banalização da situação, ou zombaria para com a vítima; não permitir que sejam solicitadas diligencias repetidas, ou desconexas com o fato típico que se analisa; mas também é importante não permitir que a suposta vítima fique na sala após seu depoimento e seja usada como arma contra a defesa; bem como deixar que a defesa exerça seu mister nos limites do que determina a Constituição Federal e o processo penal.

Lembremos que nosso processo visa garantir todos os direitos àqueles que estão sendo processados, até porque, só existirá, de fato, vítima quando houver uma condenação com trânsito em julgado e depois de possibilitar ao acusado, que demonstre que o que lhe foi imputado, de fato, não ocorreu, ou, se ocorreu, que fique devidamente provado pelo Representante Ministerial e seja aplicada uma condenação justa, na medida do crime praticado. Do contrário, não haveria razão para existir um processo, após uma investigação e gastar tanto dinheiro do contribuinte para um teatro composto por tantos atos caros e com o final pré-definido.

Dito de outra forma, é importante proteger a sociedade de crimes bárbaros, dando as vítimas desses crimes o melhor tratamento possível, inclusive assistência psicológica, na mesma medida em que, de nada servem leis para serem aplicadas por pessoas não qualificadas para o cargo e a missão que ocupam. O Estado Democrático requer imparcialidade e igualdade de armas no processo. A ética de cada profissional pode e deve ser cobrada em seus respectivos órgãos de categoria, mas a defesa, o contraditório e o devido processo legal, são expressões da cidadania, da justiça e da segurança jurídica, que é a razão de ser do direito.

*Advogado Criminalista com ênfase no Direito Penal Econômico, doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.º 21 na Academia Goiana de Direito, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial e Execução Penal na PUC/GO, Conselheiro Nacional da ABRACRIM, Presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, membro da Coordenação de Política Penitenciária  da OAB/Nacional gestão (2022/2025), Coordenador da subcomissão de Direitos Humanos para o Sistema Prisional  da OAB/Goiás (gestão 2022/2024) e Coordenador da Comissão Interestadual de Acompanhamento da Saúde no Sistema Prisional junto ao Conselho Municipal de Saúde de Aparecida de Goiânia/GO, Membro do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura/GO, Membro do FOCCO – Fórum Permanente de Combate à Corrupção do Estado de Goiás, entre outros (ver currículo lattes http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).

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