SENSO INCOMUM – O caso Queiroz e a aplicação do princípio da ipseidade!
Terão que ler até o final para saber o que é isto — o princípio da ipseidade. E se a decisão sobre Queiroz foi (in)correta. Ao trabalho.
Diz-se que temos um “sistema de precedentes”. Qual seria o sentido da palavra “sistema” nesse enunciado? Resposta: qualquer conceito (basta procurar no doutor google) que se use não encaixa com o que se vê por aí em termos de “precedentes”.
De que modo pode haver no Brasil um “sistema de precedentes”
a) se sequer há uma obediência horizontal e muito menos vertical ao princípio ou da holding que se deve retirar de um julgado (que jamais nasce como precedente),
b) se os tribunais constroem “teses” “quase-leis” como se legisladores fossem, sendo que nem os próprios tribunais se sentem vinculados ao que eles decidiram e
c) se, para “superar” um “precedente”, não se faz distinguishing? (Como fazer distinguishing daquilo que nasce como tese geral e abstrata, afinal?)
Bom, o problema, conforme explico no livro Precedentes Judiciais e Hermenêutica (ver aqui), é que, diferentemente do common law, por aqui súmulas e “teses” (porque é isso que os Tribunais fazem — teses) são feitas sempre para o futuro. O “precedente”, aqui no Brasil, é pró: já nasce para vincular no futuro. Diferentemente do verdadeiro stare decisis, uma decisão que se torna vinculante a partir da atividade de reconstrução interpretativa dos tribunais subsequentes, que identificam a ratio decidendi da decisão de um caso. Decisão, vejam bem. De um caso. Stare decisis identificada como tal pelos tribunais a posteriori.
Jamais uma tese pronta, geral, prospectiva, abstrata.
Como é o cotidiano das práticas jurídicas? Mais ou menos assim: quando um tribunal decide de um modo, no dia seguinte, ao apreciar um caso semelhante, deveria seguir o modo como acabou de decidir. Todavia, não é assim que acontece. Isto porque o Brasil instituiu um “sistema ad hoc” de pronunciamentos judiciais, aos quais, quando interessa, dá-se o nome de precedente. Na verdade, fala-se em “precedente” como sendo qualquer decisão anterior, incluindo até mesmo súmulas e as assim denominadas “teses” que exsurgem depois de um julgamento.
O que seria um precedente? Simples. É o que chega primeiro. Só que sem grau zero. E deveria ser assim: decide-se de um modo “x” — e nisso deveria haver um compromisso, porque no dia seguinte temos de, por coerência e integridade (artigo 926 do CPC) ter o mesmo comportamento decisional. Alo como “em idênticas condições de temperatura e pressão…”. Treat like cases alike. Princípio mínimo de qualquer sistema jurídico genuíno, afinal.
Ou seja, o dever, no caso seguinte, é tirar do julgamento anterior um núcleo que iluminará esse-caso-seguinte. Caso contrário, o tal precedente não “precede” e será apenas um argumento retórico de cunho justificatório. O erro nosso, no Brasil — e há incentivo para isso por parcela considerável da doutrina — foi/é pensar que precedentes são feitos como regras — como se o judiciário fosse legislador — para decidir casos futuros e não, como deveria ser, aplicar precedentes quando o caso se enquadra no, aí sim, precedente.1
Elaborar teses (é o que se faz na prática dos tribunais) tem um viés consequencialista-pragmatista. Há, nisso, a pretensão de construir respostas antes das perguntas do futuro. Por isso, aliás, é que há tantos fóruns de enunciados. Não é difícil ver decisões baseadas em enunciados. Como me disse um participante de um desses fóruns, “mas o enunciado só vale se for aprovado por unanimidade”. Ah, bom. Fiquei tranquilo com isso…!
Falo disso tudo por causa do caso do casal Queiroz. Atenção: despiciendo dizer que não é vedado a um tribunal conceder habeas nessas circunstâncias. Só tem dois problemas: um, não era assim que o Tribunal vinha decidindo; dois, ele não decidirá desse modo a partir de agora (problema da universalização da decisão). Logo, a decisão viola a coerência e a integridade do Direito. Decisão jurídica ad hoc. Inédita. Única.
Precedentes?
Veja-se o caso do ex-deputado Meurer (aqui). E o caso de outras pessoas que, em situações semelhantes aos Queiroz, tiveram seus pedidos — no nosso “sistema de precedentes” (sic) — negado.
Claro que há uma explicação para esse comportamento do judiciário, para além do caso do casal Queiroz, que, aqui, serve apenas de pano de fundo.
Explico. É que, historicamente, não nos preocupamos com a decisão jurídica; isto é, com a criação de critérios (enfim, uma heurística). No livro 30 anos de constituição em 30 julgamentos — uma radiografia do STF, falo disso na Introdução. Traço uma linha do tempo, mostrando como o instrumentalismo, o inquisitivismo e o realismo jurídico estão por trás desse desapego a critérios. Claro que tudo isso foi — e ainda é — vitaminado por coisas esquisitas e antifilosóficas como livre convencimento, livre convicção, decido conforme a consciência (lembremos do desembargador Rangel), livre apreciação da prova e as tradicionais odes aos casuísmos.
Apostas na tese de que “o Direito é o que os tribunais dizem que é” tiveram sempre um custo muito alto. E o custo aumenta a cada dia. Qual é o custo? O alto custo da ausência de critérios. Nas duas pontas, tem-se que, do mesmo modo em que não há critérios nas interpretações exegético-textualistas (afinal, ali o texto abarca o próprio critério), também no realismo retrô brasileiro (e seus genéricos) critério é coisa dispensável. O critério é o poder de decidir.
Claro que a doutrina, ao se colocar em conivência com isso, renunciou à sua função primordial: a de doutrinar e constranger. Resultado: nosso “sistema” é um amontoado de decisões ad hoc, o que transforma a dogmática jurídica naquilo que há mais de 30 anos Warat chamava de “um jogo de cartas marcadas”. Marcadas? Sim, marcadas pelo poder de inclusive controlar as regras do próprio jogo. Isso nada mais é do que o realismo jurídico à brasileira.
Frases como “decido e depois fundamento” e “decisão é um ato de vontade” não são gratuitas e nem fruto do espírito santo. Quem mais diz isso, além de Kelsen no 8º. capítulo da TPD? Bem, muita gente. Vejam ao seu redor.
Por isso tudo é que a decisão no caso do casal Queiroz não produz fissuras no campo jurídico (no sentido clássico da expressão). Quando uma decisão é a la carte, ela pode estar certa e errada ao mesmo tempo. Porque ela se iguala a outras decisões diferentes. Não é proibido conceder HC a um fugitivo. Porém…então vem uma frase adversativa. Assim como o enunciado “a água ferve a 100 graus” não é nem falsa, nem verdadeira. Porém…
Isso tudo é produto de muitas décadas. “Esforçamo-nos” muito para termos esse “sistema” assistemático. Dia desses li que existe uma coisa chamada princípio da serendipidade. Já conhecia dezenas de outros. Mas esse me chamou a atenção pelo nome bonito. O que isso tem a ver com Queiroz e sua esposa? Nada. Absolutamente nada. Mas que é bonito, é. Bem criativo.
Tem um novo princípio. Bonito também. Trata-se do princípio da ipseidade. O que determina a diferença de uma coisa para outra. O que é único no ente. Talvez tenha faltado no caso Queiroz a aplicação desse princípio. O princípio da ipseidade é o contrário do princípio da mesmidade (também conhecido como princípio da identidade-idem).2
Critérios? Zero. Precedentes? Quando convém. Afinal, o que é isto — o precedente? Ninguém sabe. Não houve nenhuma construção epistemológica. Assim, serve de super trunfo.
E a doutrina, resignada em ser caudatária de decisões dos Tribunais, além de não exercer sua tarefa epistêmica na construção de um como se decide, autoimplode sua própria pretensão descritivista-realista: como prever o que os Tribunais vão decidir, nesse neorrealismo retrô, se não há critérios?
Adianta reivindicar o tal “sistema”, fazer repositório de “teses”… pra, amanhã, o Tribunal que dizia “x” dizer “y”? Para, na outra semana, voltar a decidir “x”? E simplesmente porque sim?
Pois é. “Sistema de precedentes”. Sei. Para quem? Como?
De fato, não foi fácil mesmo chegarmos até aqui. Mas nosso esforço continua.
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1 Aqui sugiro, além do meu Dicionário de Hermenêutica e do Precedentes Judiciais e Hermenêutica, livros como O que é isto — sumulas e precedentes (meu com Georges Abboud), Crítica à Aplicação dos Precedentes no direito brasileiro (Mauricio Ramires), Precedentes no Constitucionalismo Brasileiro (Juraci Mourão). Entre outros tantos. Peço desculpas, mas o espaço é pequeno.
2 Para usar uma epistemic irony: Principle of ipseity (ou Selfhood); o seu antípoda é o principle of sameness. Research Pool on the principle of selfhood – Shimun University Press and Prelinsky Press in press – in chief: Prof. J. Ring.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br . Publicação Conjur, 16/07/2020.