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‘Sou obrigada a descumprir a lei diariamente’, diz juíza de Execuções Criminais

Comandado pelo juiz Sidinei Brzuska desde 2008, o Juizado do Presídio Central de Porto Alegre trocou de mãos na semana passada. A juíza de Execuções Criminais Sonáli da Cruz Zluhan assumiu a difícil tarefa de substituir um magistrado que se tornou ícone na luta por melhores condições de vida para os apenados da casa prisional, que já foi considerada a pior do País.
Em entrevista ao Jornal da Lei, a juíza admite tratar-se de um desafio fiscalizar o cumprimento das penas no local, e que diariamente é obrigada a descumprir a lei, diante das péssimas condições oferecidas no Central. Atualmente, a unidade abriga 4.669 presos, em um espaço com capacidade para 1.824. Cada apenado custa R$ 1.627,00 mensais para o governo do Estado.

Jornal da Lei – Qual será o trabalho desenvolvido pela senhora no Central?

Sonáli da Cruz Zluhan – A fiscalização é um pouco diferente, porque o Central está interditado há muitos anos para a entrada de presos condenados. Em tese, teriam que entrar só os detentos com prisão preventiva, sem condenação. Hoje, há uma mistura enorme, porque tem muito mais gente lá dentro do que a previsão legal, e presos que entram preventivamente acabam sendo condenados e ficando ali, porque não podem se instalar em outro presídio do Estado. Fiscalizamos na medida do possível o cumprimento da pena, porque lá praticamente tudo é irregular, no sentido do que diz a Lei de Execução Penal para o cumprimento da pena.

O que falta no Presídio Central?

Sonáli – Falta tudo, porque não existem mais celas, e sim galerias nos pavilhões, que são totalmente abertas. Os presos circulam livremente ali dentro, há galerias com quase 500. Se estivessem fechados em celas, o Central não suportaria tanta gente, não entrariam 500 de jeito nenhum. Na verdade, o Complexo Prisional de Canoas, quando foi projetado, seria usado para desativar o Central, tanto que houve a demolição de um pavilhão que, hoje, está semidemolido. Tem escombros ali, ou seja, começou a ser demolido, não foi nem se desativou o local. Mesmo assim, se ocupássemos agora o Presídio de Canoas com os detentos que estão no Central, já faltariam vagas.

O que se pode fazer com esses presos, então?

Sonáli – (suspiro) Olha, eu tenho a convicção de que só construir presídios não adianta, porque estamos encarcerando cada vez mais. A taxa de encarceramento tem aumentado vertiginosamente, mais do que o crescimento da população, de maneira geral; e não se vê o índice de violência baixar, e sim aumentar. Já fizeram centros de triagem, e as pessoas continuam esperando vagas dentro de viaturas e até em outros lugares. Recentemente, vi presos sentados no chão, ao ar livre, com os braços algemados em janelas no Instituto Penal Pio Buck, onde há um centro de triagem improvisado. Portanto, vaga em presídio não é solução, porque não temos nenhum presídio modelo, que tire o preso da criminalidade.

Nem mesmo o de Canoas?

Sonáli – Esse é único com medidas pedagógicas. Lá, o preso não tem facção, e o Estado supre absolutamente tudo. Não depende de ninguém levar alguma coisa para ele, porque o Estado está dentro do presídio, dando alimentação, higiene, escolaridade e trabalho. O problema é que esses são detentos muito caros para o Estado, no mínimo quatro vezes mais do que os de outras prisões. Aí, as cadeias se transformam em um grande comércio, com cantinas e venda de absolutamente tudo. É um preso barato, mas que está sendo cooptado para o crime, porque ali ele não aprende nada. Fica cada vez mais expert no crime, faz contatos, se filia a uma facção. Então, sem trabalhar na prevenção, através da educação, não estamos conseguindo fazer nada.

A legislação estabelece que o Estado deve garantir materiais de higiene e roupas para os detentos?

Sonáli – Tudo tem previsão legal. Se tu entras com uma ação, o advogado vai dizer que só pode acontecer isso ou aquilo, porque a previsão legal é essa. A partir disso, vais mensurar o risco que tens de ganhar ou perder. Na Execução Penal, depois que a pessoa está presa, que já se seguiu a lei até a condenação dela, se esquece a lei. Se coloca o preso lá dentro e se esquece. Eu, como juíza da Execução Penal, sou obrigada a descumprir a lei diariamente, porque cada preso que está lá dentro, que teria que ter uma cela de seis metros quadrados para ele, com previsão de o Estado suprir tudo, inclusive educação e trabalho, não tem. Então tenho que fazer “olho branco” para isso aí, fazer de conta que não tem lei nenhuma e tentar inventar, porque cumprir conforme a determinação legal não existe, talvez só em presídio federal, e olhe lá.

Parece que a situação é tão alarmante que os juízes acabam virando, de certa forma, ativistas.

Sonáli – Não dá nem para chamar de ativista, porque queremos que se cumpra a lei. Sou legalista, quero que se cumpra a Lei de Execução Penal. Há 20 e tantos anos, em Santa Vitória do Palmar, onde comecei, tinha um presídio para 44 presos. Hoje, está superlotado. Naquela época, eu ainda conseguia fazer alguma coisa. Tínhamos que correr atrás de tudo, mas pelo menos não havia um mar de gente em que não se conseguia identificar quem é quem, e é isso o que acontece hoje em dia.

O que há de modelos interessantes e promissores?

Sonáli – Temos uma expectativa, que são as Associações de Proteção e Assistência aos Condenados (Apacs), em funcionamento em alguns lugares do País. No Rio Grande do Sul, ainda não abriu, mas há previsão para Canoas e no Instituto Pio Buck. Mas vamos ver, porque o Rio Grande do Sul nunca se interessou pelas Apacs. Nos lugares em que elas foram implantadas, estão funcionando.

Como é assumir o lugar de uma figura emblemática como Sidinei Brzuska?

Sonáli – O Sidinei é conhecido em todo lugar. Foi uma transição com certeza difícil para ele, e para mim também não será fácil. É um desafio, mas houve uma mudança de competência, e ele achou que era hora de assumir outra coisa. Já começamos a atender os familiares, também atendemos os presos uma vez por semana e, ali no fórum, atendemos constantemente. É um susto, porque é uma cidade. Nas outras cadeias, onde eles estão fechados nas celas, conseguimos falar com todos. Pode-se até mandar abrir a cela para ter um contato mais próximo, então temos a certeza de que falamos com todos. Mas lá no Central não dá para entrar numa galeria com 400 presos e caminhar no meio deles. Ficamos sempre dependendo da boa vontade de quem controla a galeria, de que aquele que está precisando venha para frente e seja ouvido, e de que os processos no cartório estejam em dia. Estou rezando para dar certo.

Não seria possível interditar novamente o Central?

Sonáli – O Central já está fechado para presos condenados, só entram os preventivos. Se eu não deixar entrar preventivos ali, para onde vão? Já estão dentro das viaturas, algemados no chão, ao ar livre, em grades de janelas. Por isso eu digo que é necessária uma nova visão em relação ao que está levando à criminalidade, como é que está se prendendo, quem é que está se prendendo, se isso realmente adianta.
Por Isabella Sander
Fonte: jcrs.uol.com.br

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