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STF vai moldando ‘Constituição Geni’: bendita ou maldita, conforme o interesse

Por Djefferson Amadeus
Leio que o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, decidiu manter Moreira Franco na Secretaria-Geral da Presidência, negando dois pedidos de afastamento por suposto “desvio de finalidade” na nomeação.[1] (Ver aqui).
Ainda segundo a reportagem, os partidos basearam seu pedido, dentre outras coisas, na decisão do ministro Gilmar Mendes de impedir a nomeação do ex-presidente Lula para a Casa Civil.
Naquela ocasião, valendo-se das lições de Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero, dentre outros, o Ministro Gilmar Mendes vislumbrou a existência de “ilícitos atípicos”,[2] “porque, a despeito de sua aparência de legalidade, porque, a despeito de estarem, à primeira vista, em conformidade com uma regra, destoam da razão que a justifica, escapam ao princípio e ao interesse que lhe é subjacente.”[3]
Aqui, mais do que apontar acertos e/ou desacertos das referidas decisões, interessa-me, pois, atentar aos riscos daquilo que venho chamando de presunção Geni de Inocência. Afinal, se o direito moderno é racional, segundo o Ex-Ministro Eros Grau, “porque permite a instalação de um horizonte de previsibilidade e calculabilidade”,[4]então sempre que uma determinada decisão for proferida em sentido favorável ou contrário a determinado indivíduo, ela deverá ser proferida da mesma maneira para outras pessoas que “se encontrarem na mesma situação” (Brum).[5]
Nada mais lógico; e elementar. Afinal de contas, segundo Dworkin, “se os Juízes tivessem o poder discricionário para modificar as regras estabelecidas, essas regras certamente não seriam obrigatórias para eles e, dessa forma, não haveria direito.”[6]
Eis a razão pela qual aquilo que se disse ontem vincula o que se disse hoje que, por sua vez, deve vincular o que se dirá amanhã.
Então, por exemplo, se Ministro Luis Roberto Barroso, em notícia que foi veiculada na Conjur,[7]  asseverou, durante o julgamento da ação penal 470, que não está subordinado à multidão, mas apenas à Constituição (ver aqui), isto, a toda evidência, implica dizer que o mesmo entendimento deverá ser aplicado em outras situações.
O problema, porém, é que, hodiernamente, isto nem sempre tem sido assim. Dito de outro modo: quando a Constituição não “interessa(va)”, por ser um empecilho, dado que impossibilita(va) a prisão antes do trânsito em julgado, aí tem-se recorrido ao “sentimento social”.
Pelo menos foi o que, em certa medida, disse o Ministro Barroso à Conjur, ao ser indagado se o juiz deve sair dos autos de vez em quando para ampliar a discussão. Em suas palavras:
“Acho que, às vezes, a interpretação constitucional pode ser uma atividade puramente técnica, mas, outras vezes, ela é uma atividade que deve, inevitavelmente, ser desempenhada auscultando-se o sentimento social.”[8]
Foi aí que surgiu a expressão Presunção Geni de inocência.
Porque Geni, segundo a canção, servia apenas para apanhar; era boa pra cuspir; ela dava pra qualquer um. Em suma, Geni era uma maldita que não servia para nada! Mas um dia, a cidade apavorada, se quedou paralisada, quando o comandante de um Zepelim resolveu bombardeá-la. “Mas posso evitar o drama” – disse o Comandante – “se aquela formosa dama [Geni] esta noite me servir”.
Logo ela – que não servia para nada – cativara o forasteiro. Agora Geni era a salvação: de maldita para bendita! A cidade em romaria foi beijar a sua mão; todos gritavam que Geni, agora, era a salvação: – “Vai com ele Geni, vai Geni. Você pode nos salvar. Bendita Geni!
Foram tantos os pedidos, que Geni entregou-se ao Comandante! Mas nem bem amanhecia, o Comandante partiu. A cidade estava salva; logo raiou o dia e Geni… não mais servia! Então a cidade em cantoria voltou a bradar: “Joga pedra na Geni; ela é feita para apanhar; ela é boa para cuspir; ela dá pra qualquer um. Maldita Geni!
Geni é a Constituição: quando interessa, bendita; quando não interessa, maldita. É a presunção de inocência, que valeu para Moreira Franco, mas não valeu para Lula, quando devia valer para ambos.
E o que se retira disto, inicialmente, transportando tal pensamento para o Direito, é que a presunção de inocência, no Brasil, tem sido tratada como a Geni, isto é: quando “interessa”, bendita; quando não “interessa”, maldita.
Por isso, ainda segundo Dworkin, “o critério não pode depender das preferências pessoais do juiz, selecionadas em meio a um mar de padrões extrajurídicos, cada um deles podendo ser, em princípio, elegível. Se fosse assim, não poderíamos afirmar a obrigatoriedade de regra alguma. Já que, nesse caso, sempre poderíamos imaginar um juiz cujas preferências, selecionadas entre os padrões extra jurídicos, fossem tais que justificassem uma mudança ou uma reinterpretação radical até mesmo da regra mais arraigada.”[9]
Um adendo: o coerente, naturalmente, nem sempre é coerente. Por vezes, as coisas não saem como ele esperava. Já o incoerente, por sua vez, é aquele que não consegue nunca manter nada; e isto é feito sem nenhum esforço, de sorte que o incoerente, mesmo que ocasionalmente seja coerente, está sendo devidamente incoerente. Ou seja: o incoerente é sempre coerente, e o coerente, dificilmente.[10]
Assim fica fácil entender o que tem acontecido com o direito brasileiro: é sempre coerente, não?


[1] http://www.conjur.com.br/2016-dez-07/leia-voto-celso-mello-renan-calheiros

[2] “Os ilícitos atípicos são ações que,prima facie, estão permitidaspor uma regra, mas que, uma vezconsideradas todas ascircunstâncias, devem considerar-se proibidas.”(ATIENZA, Manuel; MANERO, Juan Rui. Ilícitos Atípicos. 2ª ed. Madrid:EditoralTrotta, 2006, p. 12)

[3]http://www.conjur.com.br/2016-mar-18/gilmar-mendes-suspende-nomeacao-lula-casa-civil MS 34.070.

[4]GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios). 6 edição refundida do ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2013, p.15

[5]BRUM, Guilherme Valle. Uma teoria para o controle judicial de políticas públicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 124-150.

[6] DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2014, p. 59.

[7] http://www.conjur.com.br/2013-set-16/aristoteles-atheniense-juiz-considerar-opiniao-cidadao-julgar

[8]http://www.conjur.com.br/2015-jul-02/entrevista-luis-roberto-barroso-ministro-stf-parte

[9] DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2014, p. 60.

[10] A construção não é minha; é do Millôr Fernandes.
 é mestre em Direito e Hermenêutica Filosófica (UNESA-RJ), pós-graduado em filosofia (PUC-RJ), Ciências Criminais (Uerj) e Processo Penal (ABDCONST). Advogado eleitoralista e criminalista.
Fonte: www.conjur.com.br

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