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Superação de estigma: a construção da identidade feminina na advocacia criminal

Fernanda Analú Marcolla[1]

As sociedades são formadas por grupos que buscam entre si, afinidades culturais. Dentro dessa cultura identitária, algumas pessoas se sentem representadas pela maioria, o que gera uma forma de senso de pertencimento para alguns e a exclusão social para outros. Toda construção identitária requer, além de tempo, movimentos sociais revolucionários, e por mais que as mulheres sejam maiorias quantitativamente no Brasil, são minorias no que tange ao reconhecimento e representação política. A invisibilidade feminina provoca uma violência simbólica quanto a potencialidade intelectual das mulheres em várias profissões.

Ao longo do tempo, a dominação masculina, na forma como é estabelecida e experimentada, o exemplo primordial dessa subordinação paradoxal, originada do que Pierre Bourdieu[2] denomina como “violência simbólica”, torna-se uma forma sutil de violência que é praticamente imperceptível para suas próprias vítimas, agindo predominantemente, através das vias completamente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, de maneira mais precisa, da falta de conhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento.

Nesta perspectiva, a relação de poder é algo que esta intrínseco em toda representação social e a partir desses movimentos, alguns indivíduos possuem dominação sobre outros. As mulheres sofreram vários tipos de violências por este tipo de movimento social no decorrer da história, sendo estas, além dominadas, adestradas ao perfil ideal de comportamento exigido pela sociedade patriarcal[3].

Por muitos anos as mulheres foram privadas da participação pública no que tange às decisões sociais, sua atuação era delimitada a cuidar do “privado”, ou seja, do lar, da família e dos filhos. As mulheres só tiveram o direito de estudar em 1827, e em 1879 fora conquistado o direito de frequentar universidades, sendo que somente em 1932 o direito ao voto feminino foi exercido pela primeira vez.

Na advocacia por exemplo, Myrthes Gomes de Campos foi a primeira mulher a se tornar advogada no Brasil. Entretanto, para alcançar o devido reconhecimento a advogada precisou descontruir o estigma de que a advocacia era uma profissão que somente homens poderiam exercer. Segundo Marcolla e Stoll[4], em 1898 Myrthes se formou na Faculdade de Direito do Recife, porém somente em 1899, após um longo período de embates jurídicos quanto a admissibilidade de uma mulher na advocacia, foi possível que uma mulher exercesse a profissão pela primeira vez.

A advogada foi pioneira na profissão e descontruiu o estigma de que mulheres deveriam se dedicar ao lar e à família. Em sua fala na tribuna ressaltou a importância da atuação da mulher na defesa criminal:

Envidarei, portanto, todos os esforços, afim de não rebaixar o nível da justiça, não compro- meter os interesses do meu constituinte, nem deixar uma prova de incapacidade aos adversários da mulher como advogada. […] Cada vez que penetrarmos no templo da justiça, exercendo a profissão de advogada, que é hoje acessível à mulher, em quase todas as partes do mundo civilizado, […] devemos ter, pelo menos, a consciência da nossa responsabilidade, devemos aplicar todos os meios, para salvar a causa que nos tiver sido confiada. […] Tudo nos faltará: talento, eloquência, e até erudição, mas nunca o sentimento de justiça; por isso, é de esperar que a intervenção da mulher no foro seja benéfica e moralizadora, em vez de prejudicial como pensam os portadores de antigos preconceitos[5].

Desde então, a presença da mulher na advocacia tem sido um fator transformador e essencial para a evolução do campo jurídico. Ao longo das últimas décadas, as mulheres têm desempenhado um papel crucial na quebra de estereótipos estigmatizastes e na promoção da equidade de gênero nessa profissão tradicionalmente dominada pelo gênero masculino. Sua contribuição tem impactado não apenas no modo como a advocacia é exercida, mas também, nas questões jurídicas abordadas[6].

Entretanto, por mais que as mulheres assumiram maior espaço na advocacia nacional, sendo maioria quantitativa na profissão[7], ainda se percebe a disparidade salarial entre os gêneros, assim como, a representatividade feminina em posições de lideranças é inferior ao desejado. De fato, a construção da nova identidade profissional da mulher na advocacia superou com êxito o estigma social de exclusão, no qual, o exercício da profissão deveria ser exclusivo para homens.

Desta feita, diante da constante evolução social, a diversidade na advocacia reflete a realidade e as necessidades da sociedade. Em resumo, a importância da mulher na advocacia é indiscutível e multifacetada. Sua presença fortalece a profissão, promove a igualdade de gênero, enriquece os debates legais e contribui para um sistema de justiça mais justo e compassivo.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina: a condição feminina e a violência simbólica. 19. Ed. Tradução Matia Helena Kühner. Rio de Janeiro: Beltrand Brasil, 2021.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no collège de France (1975-1976). Tradução Maria Ermantina Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Tradução Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: LTC, 2017.

MARCOLLA, Fernanda Analú; STOLL, Sabrina Lehnen. Cultura afrodescendente: reconhecimento de Esperança Garcia como a primeira advogada negra do Brasil. In: OLIVEIRA, Ellen dos Santos. Mulheres do Brasil: direitos humanos, linguagem e sociedade. Curitiba: Bagai, 2022.

OAB. Quadro da Advocacia. 2023. Disponível em: https://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvogados. Acesso em: 26 ago. 2023.


[1] Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduanda em Direitos Humanos pela UNIJUÍ. Mestra em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Regional de Blumenau (FURB). Especialista em Direitos Humanos e Direito Constitucional pela Universidade de Direito de Coimbra/PT. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Damásio de Jesus. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brusque (UNIFEBE).   Integrante do Laboratório de cidadania e estudos em Direitos Humanos (LACEDH). Integrante da Academia de Letras do Brasil, seccional Brusque/SC.

[2] BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina: a condição feminina e a violência simbólica. 19. Ed. Tradução Matia Helena Kühner. Rio de Janeiro: Beltrand Brasil, 2021.

[3] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no collège de France (1975-1976). Tradução Maria Ermantina Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

[4] MARCOLLA, Fernanda Analú; STOLL, Sabrina Lehnen. Cultura afrodescendente: reconhecimento de Esperança Garcia como a primeira advogada negra do Brasil. In: OLIVEIRA, Ellen dos Santos. Mulheres do Brasil: direitos humanos, linguagem e sociedade. Curitiba: Bagai, 2022.

[5] MARCOLLA, Fernanda Analú; STOLL, Sabrina Lehnen. Cultura afrodescendente: reconhecimento de Esperança Garcia como a primeira advogada negra do Brasil. In: OLIVEIRA, Ellen dos Santos. Mulheres do Brasil: direitos humanos, linguagem e sociedade. Curitiba: Bagai, 2022.

[6] GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Tradução Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: LTC, 2017.

[7] Atualmente a OAB Nacional alcançou o montante de 1.358.096 advogados em todo o país, sendo que deste número, 697.144 são mulheres e 660.952 são homens (OAB, 2023).

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