Supremo tribunal federal e a proibição de aplicação das medidas despenalizadoras da lei 9099/95
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A PROIBIÇÃO DE APLICAÇÃO DAS MEDIDAS DESPENALIZADORAS DA LEI 9099/95
Cristina Alves Tubino
Recentemente o ministro Edson Facchin proferiu decisão monocrática em sede cautelar na Reclamação 27.262 proposta pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, a fim de suspender decisão do VII Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca do Rio de Janeiro- Regional da Barra da Tijuca, em que foi concedido o benefício da Suspensão Condicional do Processo, prevista no artigo 89 da Lei 9099/95, ao agressor.
Segundo a decisão proferida pela Suprema Corte, o feito de origem trata da imputação de crime de lesão corporal em decorrência de violência doméstica ou familiar, conforme define o artigo 129, parágrafo 9º do Código Penal Brasileiro, com a alteração que lhe foi trazida pela Lei Maria da Penha. No processo, o magistrado teria, em um primeiro momento, convertido a prisão em flagrante do autor em preventiva por reconhecer a gravidade do delito, mas posteriormente ao invés de receber a denúncia oferecida, entendeu por designar a realização de “audiência especial” com o objetivo de oferecer o Sursis processual ao agressor.
Na decisão do julgador, acertadamente o Ministro entendeu por suspender, até o final do julgamento da Reclamação constitucional proposta, os efeitos da decisão que , indevidamente, aplicou o artigo 89 da Lei dos Juizados Especiais.
Infelizmente, em que pese a flagrante violação de dispositivo de lei e da afronta a entendimento já pacificado do Supremo Tribunal Federal, a decisão do judiciário carioca não é fato isolado e vem ocorrendo em diversos Juizados de Combate à Violência Doméstica e Familiar em todo o Brasil
Dentre as justificativas mais comuns as de que se tratam de medidas de “pacificação social”, de “vinculação do agressor ao processo por período maior do que uma pena que viesse a ser aplicada”, “possibilidade de imposição de medidas protetivas pelo período da suspensão do processo”.
Ocorre que nenhum dos argumentos acima mencionados encontra proteção legal ou constitucional. Senão vejamos.
A Lei Maria da Penha traz em seu artigo 41 a seguinte proibição
“Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995.
Resta claro que o legislador, ao inserir tal dispositivo, buscou afastar dos crimes e contravenções cometidos sob a égide da lei 11.340/2006, a aplicação de institutos, em especial a Transação Penal (artigo 76) e a Suspensão Condicional do Processo (artigo 89) despenalizadores e que pudessem vincular àqueles ilícitos a ideia de crimes menores.
Da mesma forma, buscou demonstrar a necessidade de medidas específicas e mais rígidas no combate aos crimes cometidos contra a mulher em estado de vulnerabilidade e considerando-se as particulares características da violência de gênero.
No nosso entender, agiu acertadamente o legislador. Os crimes cometidos nos limites estabelecidos pela Lei Maria da Penha não podem, em nenhuma hipótese, serem considerados como crimes leves ou de menor importância. Da mesma forma, não encontram nos procedimentos previstos na Lei 9099/95 adequado tratamento processual, seja com a celeridade que caracteriza o rito sumaríssimo, seja com a informalidade aplicada.
Não se pode, de forma alguma, permitir o pensamento na sociedade de que a violência doméstica seria apenas e tão somente um desentendimento entre “marido e mulher, em quem ninguém mete a colher”.
Da mesma forma, não se pode expor a vítima de violência doméstica e familiar à percepção de que seu agressor não receberá qualquer tipo de punição, ao “pagar uma cesta básica ou prestar curto período de serviços à comunidade”.
Conforme Rogério Sanches da Cunha e Ronaldo Batista Pinto é “incompreensível a resistência de alguns que, investidos na condição de legisladores, insistem no entendimento de que a lei 9.099/95 deva continuar sendo aplicada às hipóteses de violência contra a mulher”
No mesmo sentido há o enunciado de Súmula 536 do STJ, verbis: “a suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha”.
Não fosse isso suficiente, em 2012 foi levada a julgamento, perante o STF, a Ação Declaratória de Constitucionalidade 19 , em que, dentre outros aspectos, declarou-se a constitucionalidade do já mencionado artigo 41 da Lei 11.340/06. Naquela ementa entendeu-se que:
(…)
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER – REGÊNCIA – LEI Nº 9.099/95 – AFASTAMENTO. O artigo 41 da Lei nº 11.340/06, a afastar, nos crimes de violência doméstica contra a mulher, a Lei nº 9.099/95, mostra-se em consonância com o disposto no § 8º do artigo 226 da Carta da República, a prever a obrigatoriedade de o Estado adotar mecanismos que coíbam a violência no âmbito das relações familiares.
(…)
(ADC 19, Relator o Ministro Marco Aurélio de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 09/02/20121, DJe 080, publicado em 29/04/2014).
Ou seja, em sentido inverso do que alguns defendiam, a Suprema Corte declarou que o dispositivo mencionado e sua redação estão de acordo com o que determina o artigo 226 da Carta Magna, ou seja, ser a família a base da sociedade e, portanto, tem a especial proteção do Estado, inclusive devendo ele criar mecanismos que visem coibir a violência no âmbito de suas relações.
Naquela oportunidade, debruçando-se de forma aprofundada sobre o tema, entendeu o relator, Ministro Marco Aurélio, com sensibilidade que:
(…) Tenho como de alcance linear e constitucional o disposto no artigo 41 da Lei nº 11.340/2006, que, alfim, se coaduna com a máxima de Ruy Barbosa de que a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam… Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. O enfoque atende à ordem jurídico-constitucional, à procura do avanço cultural, ao necessário combate às vergonhosas estatísticas do desprezo às famílias considerada a célula básica que é a mulher. (…)
No mesmo sentido se manifestou a ministra Rosa Weber em seu voto:
(…) O dever do Estado de coibir e prevenir a violência no âmbito das relações familiares se concretiza na definição e implementação das políticas públicas, voltadas a esse fim, cujas feições são dependentes das opções feitas pelo legislador. Não obstante, o espectro de escolhas legislativas disponíveis, do ponto de vista constitucional, somente inclui aquelas que fornecem proteção suficiente ao bem jurídico tutelado, aquelas que sejam, por assim dizer, eficazes, sob pena de ser negada a força normativa da Constituição. A insuficiência na prestação estatal protetiva configura, em si mesma, uma afronta à garantia inscrita no texto constitucional . Não tivesse a experiência com a aplicação da Lei 9.099/1995 se mostrado inadequada ou insuficiente para lidar com a violência praticada no âmbito familiar, e não teria o legislador inserido, na Lei 11.340/2006, o seu art. 41.(…)
Lembre-se que os artigos 1º, 33 e 41 da Lei 11.340/06 foram, naquela oportunidade declarados constitucionais. Entretanto, em que pese o controle concentrado de constitucionalidade realizado, inexplicavelmente magistrados de primeiro grau e seus respectivos Tribunais em segunda instância vêm afrontando tal entendimento.
Basta breve pesquisa no sitio do STF para se verificar que a Reclamação em que foi proferida a decisão do ministro Edson Facchin, é apenas uma dentre 4 (quatro) Reclamações em tramitação perante a Corte em decorrência de decisões que afrontam os julgados mencionados.
No caso concreto da Reclamação dois fatos chamam a atenção: um que o juiz de primeiro grau alegou, como justificativa para a concessão do benefício despenalizador que no julgamento da ADC 19, o STF não teria feito expressa referência ao artigo 89 da lei 9099/95. Refuta-se tal argumento com facilidade posto que basta breve leitura do inteiro teor do julgado para se verificar que a Corte declarou a constitucionalidade do artigo 41 da Lei Maria da Penha, sem qualquer tipo de ressalva, ou seja, proibindo a aplicação dos institutos da suspensão condicional do processo, da transação penal e da composição civil dos danos.
Exatamente sobre esse ponto, em sua decisão monocrática, entendeu o ministro Facchin:
(…) A vista de tal premissa, entendo que não há espaço para interpretação que permita à aplicação de quaisquer dos institutos despenalizadores previstos na lei 9099/95 aos crimes praticados com violência no âmbito doméstico, incluindo-se nessa vedação, a transação penal, a composição civil dos danos e também a suspensão condicional do processo.
(…)
Desta feita, a interpretação dada pelo reclamado, ao negar vigência ao art. 41 da Lei 11.343/06, ao que tudo indica, afrontou a autoridade decisória do julgamento definitivo que esta Suprema Corte proferiu nos autos da ADI 4,424/DF e da ADC 19/DF.(…)
Outro ponto que chamou atenção foi a do oferecimento do sursis “de ofício” por parte do magistrado, face ao posicionamento do Parquet daquele Estado. Ao menos no caso, o titular da ação penal cumpriu seu dever de defender a vítima vulnerável, mas há casos em que o próprio Ministério Público oferece, contra legem¸ o benefício e o magistrado apenas homologa, fazendo com que a vítima seja revitimizada experimente o desamparo do Estado que deveria, ao contrário, lhe apoiar.
Fazendo-se, assim, uma análise menos teórica da lei face ao caso concreto da decisão que se analisa, a aplicação de sursis processual, de transação penal ou de composição civil não trazem qualquer tipo de benefício às vítima da violência.
Primeiro porque uma vez fossem cumpridas tais condições, o processo se extinguiria sem que qualquer anotação permanecesse na folha de antecedentes do agressor. Da mesma forma, o argumento da “vinculação do agressor ao processo” não é coerente.
Somos do entendimento de que as medidas protetivas elencadas nos artigos 22, 23 e 24 da Lei Maria da Penha são dotadas de cautelaridade e de urgência, mas são de natureza satisfativa, ou seja, tem a finalidade de conceder à vítima o direito material por ela pleiteado, de forma que encerram, por si mesmas, a finalidade desejada.
Ou seja, existem de forma autônoma e não dependem, para sua garantia ou eficácia, a existência de ação penal ou de tutela principal. É esse o entendimento de Maria Berenice Dias:
“O fim das medidas protetivas é proteger direitos fundamentais, evitando a continuidade da violência e das situações que a favorecem. Não são, necessariamente, preparatórias de qualquer ação judicial. Não visam processos, mas pessoas”
É esse o entendimento dos Tribunais Superiores, veja-se a título de exemplo:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. MEDIDAS PROTETIVAS DA LEI N. 11.340/2006 (LEI MARIA DA PENHA). INCIDÊNCIA NO ÂMBITO CÍVEL. NATUREZA JURÍDICA. DESNECESSIDADE DE INQUÉRITO POLICIAL, PROCESSO PENAL OU CIVIL EM CURSO. 1. As medidas protetivas previstas na Lei n. 11.340/2006, observados os requisitos específicos para a concessão de cada uma, podem ser pleiteadas de forma autônoma para fins de cessação ou de acautelamento de violência doméstica contra a mulher, independentemente da existência, presente ou potencial, de processo-crime ou ação principal contra o suposto agressor. 2. Nessa hipótese, as medidas de urgência pleiteadas terão natureza de cautelar cível satisfativa, não se exigindo instrumentalidade a outro processo cível ou criminal, haja vista que não se busca necessariamente garantir a eficácia prática da tutela principal. “O fim das medidas protetivas é proteger direitos fundamentais, evitando a continuidade da violência e das situações que a favorecem. Não são, necessariamente, preparatórias de qualquer ação judicial. Não visam processos, mas pessoas” (DIAS. Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012). 3. Recurso especial não provido.
(STJ – REsp: 1419421 GO 2013/0355585-8, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 11/02/2014, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 07/04/2014)
A mulher vítima de violência muitas das vezes, pela sua vulnerabilidade, seja pela natureza das agressões sofridas, seja pela situação de fragilidade em que se encontra, não se vê como sujeito de direitos, de forma que o Estado deve chamar para si a responsabilidade de protege-la, seja pela aplicação das medidas protetivas de urgência mencionadas, seja dando seguimento à ação penal independentemente da sua vontade, em determinados tipos penais, seja pela proibição de institutos despenalizadores que acabam por caracterizarem-se como verdadeira impunidade dos agressores.
É de se concluir que, muito longe de afrontar o princípio da igualdade (art. 5º, I, da Constituição), a Lei nº 11.340/06 estabelece mecanismos de equiparação entre os sexos, em legítima discriminação positiva que busca, em última análise, corrigir o grave problema da violência contra a mulher, e para tanto um dos instrumentos adotados foi o de afastar os institutos despenalizadores da lei 9099/95.
A lei 11.340/06 reflete a forma neoconstitucionalista da igualdade material, e se firma em conformidade com a assertiva internacional que inscreve a violência de gênero como violação dos direitos humanos e da paz social.
BIBLIOGRAFIA
BIANCHINI, Alice. Lei Maria da Penha. Aspectos Assistenciais, Protetivos e Criminais da Violência de Gênero. Editora Saraicva, 3ª edição, 2016.
CANO, Leandro J. B. e ASSUMPÇÃO FILHO, Mário Rúbens. Lei Maria da Penha. Lei 11.340/06. Dez Anos de Violência, Editora Lumen Juris, 2016.
CUNHA, Rogério Sanches e PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica. Lei Maria da Penha Comentada Artigo por Artigo, Editora Revista dos Tribunais, 6ª edição.
DIAS. Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.