Teoria da Fechadura – Ronaldo David Guimarães
1º COMENTÁRIO CIENTÍFICO[1]
Ronaldo David Guimarães[2]
Já tratamos do tema das drogas em outra oportunidade. Mas o debate é sempre atual, e o tempo sempre agrega novos argumentos, a justificar outras reflexões e a nos obrigar a nos posicionarmos “de qual lado estamos a olhar da fechadura” sobre a liberação do uso de drogas.
A política contra as drogas que Portugal iniciou em 2001 continua a chamar a atenção de toda a ordem de poder e ordem jurídica mundial. São inúmeras as comparações feitas sobre a evolução portuguesa nesta matéria, e o principal questionamento é por qual motivo resto do mundo não copia o exemplo, visto restar comprovado, através de gráficos, maior quantidade de resultados positivos após a descriminalização do consumo de drogas ao invés do cárcere.
Concernente a pontos históricos, relembramos que algumas religiões concebiam a cannabis como uma planta sagrada, medicinal e profundamente ligada à árvore da vida, conforme a própria Bíblia Sagrada menciona em Apocalipse 22.2 (…), “e as folhas da árvore são para a cura das nações”[3]. E, notadamente segundo os antepassados, a maconha é uma erva sagrada e teria sido encontrado no túmulo do Rei Salomão[4].
E foi através de pesquisas “científico-jurídico-medicinais”, realizadas de forma pormenorizada, porque Portugal chegou a um “estado de pânico” relativamente ao consumo de droga. E, como sempre, Portugal é um dos primeiros países a inovar sobre ciências penais, as pesquisas mostraram que pessoas encontradas com produto estupefaciente poderiam ser sujeitas a uma advertência, a uma pequena multa, ou obrigadas a comparecer numa comissão local – ir até um médico, advogado ou assistente social – [para serem informados] sobre tratamento, redução de danos e de serviços de apoio disponíveis, escreveu o jornal The Guardian[5]..
Mesmo não concordando com a obra de Lombroso, poderíamos afirmar que a predisposição ao uso das drogas poder-se-á ser originada da herança genética, conforme afirmado em O homem delinquente. “Como não concluir que, desde sua primeira manifestação, o crime está ligado às condições orgânicas das quais é efeito direto”[6]!
Apesar do exemplo destacado por Portugal, nas mortes provocadas por overdose, registrou-se a presença de opiáceos em 53% dos casos, seguindo-se a cannabis (30%), a cocaína (28%) e a metadona (25%). Na grande maioria destas overdoses, foram detectadas várias misturas de substâncias, sobretudo entre benzodiazepinas e álcool e as drogas ilícitas.
Gomes Canotilho[7], em relação à autorização constitucional para a emanação de leis restritivas ou descriminativas e ao exercício do poder discricionário de punição por parte do legislador, deve-se ter por escopo uma indelével conexão material de meios e fins, ressaltando a necessidade de utilização da Constituição como repositório epistemológico, teleológico e axiológico do direito penal para acompanhar a inovação evolutiva da sociedade globalizada.
Nesta mesma linha de raciocínio, destaca-se a significativa lição de Figueiredo Dias (1995)[8], que afirma: “O meu corpo e a minha saúde pertencem-me, como só a mim pertence a forma de modelar a minha vida, tendo inclusivamente o inalienável direito de ir para o inferno a minha própria maneira”. Com o ensinamento de Santo Agostinho[9] em sua obra patrística[10] no subtítulo – o motivo de nem todos conseguirem a desejada felicidade – afirmou: “Mas na tua opinião haverá um só homem sequer que não queira e deseje, de todos os modos, viver vida feliz”!
E não obstante foi a vez de o jornal New York Times realizar uma longa reportagem na qual promete explicar “como ganhar a guerra contra as drogas”. “Portugal trata a adição como uma doença, não um crime”[11], diz o jornal norte-americano. Reportagem americana que nos força a refletir um pouco mais, visto se tratar de um Estado extremamente positivista sobre o assunto em dedilha.
Já os proibicionistas são favoráveis neste contexto a um Direito Pena e máxima intervenção, que se caracteriza pela circunstância de o Estado intervir, cada vez mais, na resolução de conflitos interpessoais com uma resposta penal em última ratio. Em detrimento de toda essa forma de reação aos diversos conflitos que caracteriza a sociedade, ressurge o Direito Penal do Inimigo, de Günther Jakobs[12]. Ao bom debate necessário se faz citar, mesmo de forma superficial, o conceito de Jakobs.
Hoje, João Goulão[13] é o czar das drogas de Portugal. João Goulão também é o mais requisitado embaixador da descriminalização do consumo da droga no mundo. Ele viaja quase ininterruptamente, da Noruega ao Brasil, “precisam lidar com situações desesperadoras em seus próprios países”[14].
No mesmo sentido, transcrevemos as declarações das impactantes palavras do médico-forense Antônio Drauzio Varella[15]“No combate às drogas ilícitas, vamos de mal a bem pior. Até quando insistiremos nesse autoengano policialesco-repressivo-ridículo que corrompe a sociedade e abarrota as cadeias do País?[16]”.
Vejamos também as sábias palavras de Hassemer: “A imagem que resulta é a de um direito penal protetor ”(HASSEMER, 2001, p. 79)[17]. A principal preocupação é aferir os limites do Estado na intervenção da liberdade humana e a legitimidade para protegê-las dos seus próprios atos. Ninguém melhor que o próprio prejudicado para saber o que melhor lhe cabe. Do mesmo modo, não se deve buscar um benefício sob meios coercitivos e repressivos, caso esta busque implique num mal superior ao beneficiado ao tratamento do indivíduo.
Consoante ensinamentos de Roxin ainda no ano de 2005, “ a proteção das normas morais, religiosas ou ideológicas, cuja violação não tem repercussões sociais, não pertence, em absoluto, às tarefas do Estado democrático de direito, que, ao contrário, deve também proteger as concepções discrepantes das minorias e sua implementação”[18].
Ainda nos ensinamentos de Roxin: “Impedir que as pessoas se despojem da própria dignidade não é problema do direito penal. Mesmo que se quisesse, por ex. considerar o suicídio um desprezo à própria dignidade – o que eu não julgo correto – este argumento não poderia ser trazido para fundamentar a punibilidade do suicídio tentado”[19].
Verdadeiramente houve em Portugal um grande aumento do número de dependentes de drogas em tratamento, segundo um estudo sobre o tema publicado em 2009 pelo advogado e jornalista americano Glenn Greenwald[20].
Nos ensinamentos em sala de aula e através da experiência empírica do professor Manuel Monteiro Guedes Valente, continua a fazer todo o sentido questionar o enquadramento legal da toxicodependência. É, de resto, essa a missão de seu livro, “Consumo de Drogas — Reflexões sobre o Novo Quadro Legal”[21].
Fazendo “zoom” à legislação que resultou da Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga aprovada em 1998, Doutor Manuel Valente começa por questionar o próprio princípio da descriminalização. “Interrogamo-nos se seria a única [alternativa] viável face aos padrões culturais de Portugal, face aos princípios atuais da luta contra a droga, face à legitimidade da intervenção penal”, explica, admitindo embora que a alteração legislativa “é uma consequência inevitável (…) do notável fracasso das políticas de criminalização”[22].
Zaffaroni (2013, p. 115) uma vez afirmou, e com ele não há como não fazermos coro, que, se colocarmos os números na ponta do lápis, provavelmente veremos que a guerra às drogas, em poucos anos, foi responsável por um número de mortes infinitamente superior àquele que, em cem anos, teríamos de pessoas mortas por overdose[23]. E, com tal afirmação, podemos ver a ilogicidade da política que adotamos hoje.
O axioma da descriminalização em relação ao usuário de drogas é que se trata de uma doença e não de uma traficância, teoria reiteradamente apresentada pelos pesquisadores, um consenso inicial necessário para a construção e/ou aceitação da teoria, entretanto ainda presenciamos inúmeras dissonâncias aos ouvidos da massacrante maioria da sociedade que não tem devido conhecimento de causa. Desconhecimento que nos traz a necessidade de maior habilidade para apresentarmos o possível e pleiteado fim a ser alcançado com a descriminalização em relação aos usuários de drogas.
A falta epistemológica do assunto somada com o não contato ou convívio com um dependente de drogas leva a pessoa a ter uma opinião quase sempre contraria à ciência.
Concernente à saúde individual, não há dúvidas de que impedir o acesso do usuário à droga é relevante para a preservação de sua integridade física e psíquica, ou seja, para a preservação de seu espaço de dignidade. Devemos entender o livre-arbítrio e a sucumbência da pessoa humana em seu momento de fissura e abstinência.
No entanto, como já exposto, a proteção de um bem jurídico não pode passar pela criminalização de seu próprio titular. A incidência da sanção penal sobre alguém retira uma parcela de sua autodeterminação, em operação apenas autorizada para assegurar um patamar de dignidade de terceiros, afetados pelo crime. Não parece fazer qualquer sentido à subtração da liberdade de alguém com o objetivo de proteger esta mesma liberdade sob outro prisma.
O problema não está na Constituição Federal, está nas ruas! A ignorância é a pior das drogas, e mata!
Por isso, o uso do direito penal contra o usuário de drogas com a justificativa de protegê-lo carece de legitimidade humanitária. Não é outro o entendimento de inúmeros juristas que se dedicaram ao estudo do tema e com estes coaduno meu entendimento. No mesmo sentido, decisões judiciais pátrias e de outros países apontam a incompatibilidade entre o tipo penal em discussão e a dignidade humana.
[1] Comentário científico avaliativo, referente a Direito: da norma ao procedimento e fase aplicativa, ministrada pelo Professor Doutor Manuel Monteiro Guedes Valente.
[2] Doutorando em Ciências Jurídicas na Universidade Autónoma de Lisboa. Mestre em Ciências Penais pela Universidade Autónoma de Lisboa e Especialista em Direito Público pela FESURV – Rio Verde – Goiás.
[3] A Bíblia Sagrada, edição Contemporânea de Almeida Copyright 1990 por Editora Vida. Deerfield, Florida 33442-8134 – EUA. Publicado por Alfalit Brasil em cooperação com Alfalit International, Inc. Pag. 231.
[4] Salomão foi um rei de Israel (mencionado, sobretudo, no Livro dos Reis), filho de David com Bate-Seba, que teria se tornado o terceiro rei de Israel, governando durante cerca de quarenta anos (segundo algumas cronologias bíblicas, de 966 a 926 a. C.). Salomão também é o escritor de Provérbios, um famoso livro da Bíblia.
[5] Jornal The Guardian. www.jornaltheguardian.com.br.
[6] Segundo Lombroso em 10 ladrões, 9 foram seduzidos por outros mais velhos que lhes ofereceram frutas ou pão, se eram pobres; moças, caso tivessem fortuna, pois, fazendo-se contrair dívidas, ligavam-nos indissoluvelmente ao crime. Tu, no fundo da alma – machucada – nos faz despontar – suave, encantadora – de doce esperança – uma centelha – uma infinitamente bela e querida centelha. LOMBROSO, César, 1835-1909. O homem delinquente / Cesar Lombroso, tradução, atualização, notas e comentários. Maristela Bleggi Tomasini e Oscar Antonio Corbo Garcia. Porto Alegre. Ricardo Lenz, 2001. p. 67/393.
[7] CANOTILHO. J. J. Gomes – Direito constitucional. 5. Ed. Coimbra: Almedina, 2008, p. 325.
[8] FIGUEIREDO DIAS, Jorge de – Uma proposta alternativa ao discurso da criminalização/descriminalização das drogas – Revista Jurídica de Macau. Gabinete para os Assuntos Legislativos: Macau – ISSN 0872-9352. Vol.2, N.1 (jan./abr. 1995) p. 13-31.
[9] AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona, 354-430 – O livre-arbítrio / Santo Agostinho; (tradução, organização, introdução e notas Nair de Assis Oliveira; revisão Honório Dalbosco). – São Paulo: Paulus, 1995. – Coleção Patrística. Título original: De libero arbítrio. p. 61. ISBN 978-85-349-0256-4.
[10] Explicar: patrística é o nome dado à filosofia cristã dos três primeiros séculos, elaborada pelos Pais da Igreja, os primeiros teóricos – daí “Patrística” – e consiste na elaboração doutrinal das verdades de fé do cristianismo e na sua defesa contra os ataques dos pagãos e contra todos que eram contra, denominados heresias.
[11] New York Times. Descriminalização do uso de drogas portuguesa. www.newyorktimes.com.br.
[12] JAKOBS, Gunter; MELIÁ, Manuel Cancio – Sobre la génesis de la obligación jurídica. Colombia: Universidad Externado de Colombia, 2005.
[13] Goulão. João.
[14] Idem. Ibdem.
[15] Dr. Antônio Drauzio Varella. São Paulo, 3 de maio de 1943, é um médico oncologista, cientista e escritor brasileiro, formado pela Universidade de São Paulo (USP), na qual foi aprovado em 2°, e cujas aparições em programas de rádio, TV e na Internet, onde tem site e um canal no Youtube, o tornaram famoso.
[16] Idem. Ibdem.
[17] HASSEMER, 2001, Introducción a lá criminologia. p. 79. Editorial Tirant lo Blanch. ISBN-10: 8484423913, ISBN-13: 978-8484423911.
[18] ROXIN, Claus – Derecho penal. Parte General. 2ª ed., Thomson: Madrid, 2006, p. 63. Minha tradução.
[19] ROXIN, Claus – Estudos de direito penal. Tradução de Luis Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 40.
[20] Jornalista Glenn Greenwald.
[21] GUEDES, Manuel Monteiro Valente – Direito Penal. Fundamentos Político-Criminais. Lisboa: Almedina, 2017. p. 19. ISBN n. 9789729911811.
[22] Idem – Ibidem.
[23] ZAFFARONI, Eugenio Raúl – Guerra às drogas e letalidade do sistema penal. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 16, p. 115-125, 2013.