Tipos abertos e fechados na tipicidade por subsunção: as Dez Medidas do MPF e o abuso de autoridade – Por Jader Marques
Por Jader Marques – 06/12/2016
O tema dos tipos abertos foi retomado com muita força neste difícil final de 2016, quando, no debate em torno das chamadas “DEZ MEDIDAS DO MPF”, o Congresso, dentre tantas modificações e emendas, votou a criação de um tipo penal relativo ao crime de abuso de autoridade praticado por juízes[1] e membros do MP[2] no exercício da função.
O fato é que, já no dia seguinte, surgiram notícias de que a inconformidade das autoridades atingidas pela emenda estaria centrada no aspecto de ter sido criado um tipo penal aberto, leia-se: com redação vaga e indeterminada e, por isso, capaz de representar uma forma de intimidação.
Ao perceber o rumo do debate, lembrei-me das tantas discussões com meu orientador da tese de doutorado Lenio Streck e, principalmente, das horas de debate e aprendizado com meu querido amigo Rafael Tomaz de Oliveira, além da parceira e colega de estudo Clarissa Tassinari.
Apesar de entender que essa discussão deveria estar completamente ultrapassada, volto ao tema em homenagem aos meus companheiros de jornada acadêmica e pela (inacreditável) atualidade do problema: existem tipos penais abertos e fechados?
Uma rápida passagem pelos principais momentos da evolução da teoria geral do delito demonstra o desejo de alcançar, pela ciência do direito, um grau matemático de certeza a partir da aplicação universal do método dogmático. Do causalismo naturalista, passando pelo neokantismo, pelo modelo finalista, chega-se ao final do século passado com uma noção de crime que expõe, em linhas gerais, o estado da arte da tipicidade no seio da teoria do delito, dentro da qual está cristalizado o modelo tripartido de crime – como fato típico, antijurídico e culpável.
No estudo da teoria do crime, a crítica contundente dos penalistas à questão da vagueza na construção dos tipos penais revela a obsessão pela diminuição/eliminação dos espaços de interpretação e a relação equivocada desta visão com a sonhada segurança jurídica – advinda da noção de “interpretação literal da lei” e que demonstra a vinculação (ainda hoje) ao positivismo exegético da primeira fase do positivismo jurídico.[3]
A dogmática dos manuais de direito penal reproduz aquilo que está plantado no senso comum teórico dos juristas a respeito desta aposta na necessidade de precisão e clareza das palavras.[4]Sem perceber a abertura interpretativa decorrente da porosidade do tipo, enquanto regra, a discussão fica centrada, quase que exclusivamente, na questão da vagueza e ambiguidade, como se tudo estivesse ligado à qualidade da redação típica, como se a escolha da melhor redação das leis incriminadoras fosse capaz de afastar a necessidade de interpretação, ou seja, mesmo diante da evidência de que a melhor construção típica não resolve o problema da interpretação, não segura todas as hipóteses de aplicação do tipo penal, não elimina a necessidade de controle da decisão, a maioria dos penalistas (ainda) aposta todas as suas fichas na busca incansável da melhor semântica típica.[5]
O raciocínio remete para o dever de o “legislador” fazer a escolha daquela formulação mais clara entre todas, da mais ampla e, ao mesmo tempo, mais certa para servir de molde ao posterior acoplamento, encaixe, subsunção, como se o processo legislativo não fosse caótico, imprevisível, e como se a palavra possuísse desde sempre um sentido determinado capaz de abranger todos os casos possíveis. A escolha das palavras certas é que permitiria, a partir da descrição completa do modelo de conduta proibida, a simples constatação da correspondência entre a conduta concreta e a descrição típica, sem deixar ao intérprete qualquer outra tarefa, ou seja, tornando desnecessária a interpretação.
A amarração da decisão, portanto, ainda é feita com base na ideia de controle do julgador pela noção de literalidade dos dispositivos, num aposta exegética incompatível com o estado da arte do direito nesta quadra do tempo.
Pode-se dizer que o princípio da taxatividade, no plano do senso comum teórico dos juristas, é tomado num contexto em que a interpretação, por força da melhor redação dos tipos, ficaria apenas destinada para os casos difíceis (onde há dúvida na aplicação – da letra fria – da lei).[6]
Por isso a afirmação de que o raciocínio em matéria de tipicidade (ainda) está apoiado no paradigma do positivismo jurídico exegético, na medida em que se acredita na possibilidade de eliminar os espaços de interpretação pela correta construção da incriminação, situação que conduziria o jurista, pelo respeito à taxatividade, para a segurança da aplicação da literalidade da lei, como se aplicar a lei não fosse, inexoravelmente, o produto de uma interpretação.
Mas não é só isso.
Na verdade, há uma mixagem desta expectativa de exegese, a um só tempo, com o reconhecimento da abertura interpretativa da regra a ser resolvida pela discricionariedade, o que opera um verdadeiro sincretismo, naquilo que Lenio Streck trabalha como postura decorrente do “eu decido conforme a minha consciência”.[7]
Conforme a doutrina tradicional, portanto, os tipos penais são considerados abertos ou fechados, havendo uma crítica veemente à produção legislativa pautada na utilização de palavras vagas, diante da lesão ao ideal da taxatividade penal. Daí se depreende que apenas nos tipos abertos haveria necessidade de interpretação, já que, pela forma como são redigidos os tipos fechados, não haveria necessidade de o intérprete fazer outra coisa que não fosse a subsunção.
Esta crença mostra o quanto os juristas ainda não perceberam o caráter hermenêutico da tipicidade, apostando tudo na discricionariedade como solução para os “espaços de indeterminação”. Ou sejam, não preocupa tanto a possibilidade de que haja julgamentos totalmente diferentes sobre uma mesma matéria, porque isto seria parte da (“necessária”) discricionariedade que pressupõe os tipos abertos, já que cada um tem a sua opinião a respeito das coisas, tudo é relativo, não há verdades absolutas, tudo depende de quem está julgamento, da sua base de valores, seus filtros.
Ledo engano.
A discussão acaba, então, centrada na noção de que uma lei penal “vaga” afeta a tentativa de conhecimento prévio das possibilidades futuras de subsunção, o caráter matemático da ciência jurídica, a estabilidade e a determinação da interpretação. Palavras vagas teriam o condão de ampliar demasiadamente o horizonte de possibilidade de subsunção, tornando o direito mais incerto e menos estável.[8]
É aqui que reside, pois, o nó cego da crise da tipicidade penal, ou seja, há uma busca incansável pela pureza semântica, metódica, sistemática do direito, sem perceber o seu caráter essencialmente hermenêutico.
Não há como abrir mão da interpretação.
Nesse caminho, veja a débil tentativa do Juiz Sérgio Moro, no sentido de “fechar” a tipicidade da disposição legal relativa ao abuso de autoridade, quando propõe a redação de um parágrafo com o seguinte texto (esclarecedor): “Não configura crime previsto nesta lei a divergência na interpretação da lei penal ou processual penal ou na avaliação de fatos e provas”.
Recusando a proposta, mas incorrendo no mesmo problema, o Senador Roberto Requião apresentou outra redação: “Não constitui crime de abuso de autoridade o ato amparado em interpretação precedente ou jurisprudência divergentes, bem assim o praticado de acordo com avaliação aceitável e razoável de fatos e circunstâncias determinantes, desde que, em qualquer caso, não contrarie a literalidade desta lei.”
Como se vê, seguem os juristas e legisladores na árdua e ilusória missão de tentarem prever na lei penal todas as hipóteses de aplicação possíveis, mediante uma redação que resolva, pela sintaxe e pela semântica, o “problema da subjetividade”.
É a ilusão de segurança jurídica[9] ou o caráter retórico do princípio da legalidade.[10]
Interpretar não é um processo reprodutivo, mas produtivo, no qual o intérprete é responsável por esta “produção de sentido” e, por consequência, é também responsável pela explicitação do compreendido (fundamentação).
Com esse pequeno esforço teórico, tomando a discussão mais candente da atualidade, quero chamar a atenção para o caráter hermenêutico da tipicidade, fazendo ver que ela é, sempre, uma experiência interpretativa, o que me leva a usar a expressão tipicidade hermenêutica, num contraponto ao modo como este tema é tratado pela teoria do direito penal predominante.
É urgente a refundação do conceito de tipicidade, de modo a incluir nele esse elemento interpretativo, o que representa abrir mão das estratégias analíticas que não são capazes de segurar efetivamente o intérprete. É indispensável encontrar outro caminho, que torne mais efetiva a aderência do intérprete à legalidade penal (pensada como legalidade constitucional).
A coisa mais importante a ser dita, concluindo, é que a tipicidade não é o resultado de uma operação metódica de acoplamento, mas a tensão entre o texto e o sentido do texto na sua aplicação a uma situação (concreta). É algo que está ligado às condições do homem ter acesso ao conhecimento sobre as coisas. É, portanto, um problema hermenêutico.
Mais não digo.
Notas e Referências:
[1] TÍTULO III – DA RESPONSABILIZAÇÃO DOS AGENTES PÚBLICOS POR CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE
CAPÍTULO I – DOS MAGISTRADOS
Art. 8º – Constitui crime de abuso de autoridade dos magistrados:
I – proferir julgamento, quando, por lei, seja impedido;
II – atuar, no exercício de sua jurisdição, com motivação político-partidária;
III – ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo;
IV – proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções;
V – exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo de magistério;
VI – exercer atividade empresarial ou participar de sociedade empresária, inclusive de economia mista, exceto como acionista ou quotista;
VII – exercer cargo de direção ou técnico de sociedade simples, associação ou fundação, de qualquer natureza ou finalidade, salvo de associação de classe e sem remuneração;
VIII – receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo;
IX – expressar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre cesso pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério.
[2] CAPÍTULO II
DOS MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Art. 9º São crimes de abuso de autoridade dos membros do Ministério Público:
I – emitir parecer, quando, por lei, seja impedido;
II – recusar-se à prática de ato que lhe incumba;
III – promover a instauração de procedimento, civil ou administrativo, em desfavor de alguém, sem que existam indícios mínimos de prática de algum delito;
IV – ser patentemente desidioso no cumprimento de suas atribuições;
V – proceder de modo incompatível com a dignidade e o decoro do cargo;
VI – receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, honorários, percentagens ou custas processuais;
VII – exercer a advocacia;
VIII – participar de sociedade empresária na forma vedada pela lei;
IX – exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública, salvo de magistério;
X – atuar, no exercício de sua atribuição, com motivação político-partidária;
XI – receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei;
XII – expressar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de atuação do Ministério Público ou juízo depreciativo sobre manifestações funcionais, em juízo ou fora dele, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério.
[3] Mesmo o setor da dogmática que superou o exegetismo mostra-se impermeável aos efeitos do giro linguístico e à superação da metafísica da tradição, o que provoca ainda a crença na metódica moderna da subsunção de algo a algo, tomada a linguagem como terceira coisa e não como condição de possibilidade. Lenio Streck adverte: “Mas isso não apaga o fato de que ainda vivemos em um mundo jurídico que busca exorcizar os fatos e conflitos tratados pelo direito. Isto é, em um mundo no qual a metodologia jurídica continua com a função de promover a desvinculação do caráter historicamente individualizado do caso que esteja na sua base, para atingir o abstrato generalizável e comum, como bem alerta Castanheira Neves. Para tanto, basta um rápido olhar na operacionalidade do direito no Brasil para constatar a resistência exegético-positivista, calcada muito mais em decisionismos e discricionariedades do que em discursos que procurem efetivamente colocar o direito como uma ciência prática, destinada a resolver problemas (sociais), mormente nesta fase da história, em que lemos, por exemplo, na Constituição, que o Brasil é uma República cujos objetivos são, dentre outros, a redução da pobreza, a justiça social etc.” STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 67.
[4] Luiz Alberto Warat, ao falar do positivismo de Augusto Comte, destaca a sua importância para a compreensão do pensamento contemporâneo e para um melhor entendimento de alguns discursos elaborados, especialmente nas faculdades de direito, mas com ampla aplicação a todas as áreas do direito. A visão cientificista do Direito está ligada ao legado positivista de sua filosofia, já que a tradição positivista considera a ciência como o único tipo de conhecimento válido, que só admite os chamados conhecimentos objetivos, num conceito de racionalidade dominante na modernidade. Sendo essa uma racionalidade cientifica, normalmente orientada para a realização de fins; racionalidade tomada como “cálculo”, “calculabilidade”, sendo que os princípios de organização do conhecimento permitem calcular os fins a serem atingidos através de uma causalidade própria dos meios. Em outras palavras, uma racionalidade capaz de tomar possível o cálculo da realização dos fins por ter conseguido transformar o natural e o socialmente existente em meio para ações que controlam e utilizam objetivamente seus objetos. No positivismo, as questões relativas ao conhecimento já se encontram definidas pela própria realidade das ciências, ou seja, as condições do conhecimento só podem ser entendidas sob a forma de uma investigação das regras de constituição e comprovação das teorias no interior de um modelo já consagrado pela comunidade científica. Por isso, Warat vai dizer que o “real” está limitado ao âmbito dos enunciados comprovados como verdadeiros por essa mesma comunidade científica, isto é, no universo dessa “moldura férrea” não cabem postulações morais, políticas ou sociais, visto que os vínculos do positivismo com o “mundo da vida” são orquestrados pela concepção de uma razão instrumental orientada pelas relações meio-fim. WARAT, Luiz Alberto. Epistemologia e Ensino do Direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2004. p. 496.
[5] É óbvio que se deve exigir uma redação adequada dos textos legais, situação bastante prejudicada no atual contexto de expansão do estado penal, no qual se acredita que as casas legislativas possam tudo em matéria de edição de novas incriminações. Sem dúvida, é evidente a necessidade de uma adequada redação da lei incriminadora. Entretanto, deve-se ter claro que esta questão não constitui, por certo, um problema para a hermenêutica.
[6] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Volume I. Tomo I. Rio de Janeiro Forense, 1977. p. 65.
[7] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
[8] Tércio Sampaio Ferraz Júnior, nesse sentido, trata a questão da decidibilidade como problema central do Direito: Note-se, inicialmente, que não falamos em objeto, mas em problema. Com isso, queremos dizer que, seja qual for o objeto que determinemos para a Ciência do Direito, ele envolve a questão da decidibilidade. Toda a ciência tem um objeto, mas seja quais forem os objetos e as ciências, uma preocupação máxima os envolve, a qual se caracteriza com sua questão peculiar. Referimo-nos à alternativa verdadeiro ou falso. Uma investigação científica sempre faz frente ao problema da verdade. Admitimos, assim, que toda a ciência pretende obter enunciados independentes da situação em que são feitos á medida que aspiram a uma validade erga omnes. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo: Atlas, 1980. pp. 42-43.
[9] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: 2003.
[10] CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. O caráter retórico do princípio da legalidade. Porto Alegre: Síntese, 1979.
Jader Marques é Advogado desde 1996. Especialista e Mestre em Ciências Criminais pela PUC/RS e Doutor em Direito pela UNISINOS/RS. Integra a Associação dos Escritórios de Advocacia Empresarial – REDEJUR, o Centro de Estudos das Sociedades de Advogados – CESA e o Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais – ITEC. Presidente da ABRACRIM-RS.
Fonte: http://emporiododireito.com.br/