TRÊS TEMAS DE DIREITO PENAL E A SOCIEDADE GLOBALIZADA: sociedade de risco, agir comunicativo e a imputação objetiva
Marcelo Bareato
Interessante observar os acontecimentos políticos aos quais estamos sendo submetidos e, principalmente, verificar o quanto ficamos apáticos, esperando que um salvador, em sua estrutura armada e reluzente, apareça para nos livrar de todo o mal e nos colocar em rota segura, para que sejamos agraciados com fartura e prosperidade.
A falha no discurso aparece quando lembramos que somos um país consumista, despreparado e despreocupado com qualquer conhecimento jurídico e, acima de tudo, crescemos escutando aquele discurso: “aqui é cada um por si e Deus para todos”; “você tem que fazer amigos, ter padrinhos ou prestar um concurso para conseguir um carguinho e ficar mamando nas tetas do governo e ter estabilidade”.
Isso é tão arraigado no inconsciente brasileiro, que certa vez, entrando em uma sala de aula, fui surpreendido com um aluno que me parou e disse em tom jocoso: acabei de tocar fogo num ônibus no terminal “x”, e quero saber a sua opinião! Perguntei-lhe: qual foi a sua motivação? Respondeu-me: revolta, estou revoltado e preciso descontar em alguém ou alguma coisa, para que todos saibam o meu descontentamento! Perguntei-lhe novamente: para entrar nessa faculdade, o que você teve que fazer? Resposta: prestar vestibular. Pergunta: para prestar o vestibular, o que teve que fazer? Resposta: estudar. Pergunta: e se não tivesse passado no vestibular? Resposta: entraria com recurso. Pergunta: para entrar com recurso, o que teria que fazer? Resposta: preparar-me, estudar para montar o recurso. Então, concluí: que coisa mais estranha! Para passar no vestibular você estudou e se preparou a tal ponto que, se precisasse, estaria pronto para entrar com recurso… De outro lado você chegou em sala e me disse que estava revoltado e como forma de protesto, incendiou um ônibus… Por que não fez como no vestibular, se preparou, estudou quais são os seus direitos e como pleiteá-los, ingressou com a medida cabível e se preparou para um eventual recurso?
Pois é! Cidadão é aquele que conhece seus direitos e sabe como exigi-los!
Bem! Talvez o meu leitor esteja a se perguntar: Para que toda essa história? Não era sobre Globalização que o sujeito estava escrevendo?
É, de fato é, mas você vai começar a entender à partir de agora.
Poucos sabem, ou se deram ao trabalho de pesquisar e constatar que tudo o que fazemos contribui, ou pode contribuir para a responsabilização daquele que pratica uma atividade criminosa, ou, como chamamos tecnicamente em Penal, uma conduta.
Assim, com a reforma da parte geral do Código Penal, em 1984, Lei n. 7.209, de 11 de julho de 1984, o direito brasileiro adotou teorias alemãs, extremamente eficazes e que denotam a responsabilidade do cidadão chamado “de bem”, no contexto social e criminal. São elas:
- SOCIEDADE DE RISCO
Em termos globais, não podemos desprezar o fato de que, ao passarmos de uma sociedade feudal para a era agraria, capitalista e industrial, o mundo sofreu uma quinada que trouxe consigo três grandes tipos de ameaças: 1) destruição ecológica; 2) os riscos relacionados à pobreza e 3) os riscos decorrentes das armas de destruição.
Esses riscos, quando voltados ao panorama micro, entendido como o cidadão, indica que esperar que o Estado lhe proporcione segurança é uma utopia e que todos estamos sujeitos a vitimização por parte de agentes criminosos.
Surgem então, as seguintes perguntas: Se o Estado não me proporciona segurança, como posso fazer? Estou preso em casa e os bandidos estão soltos? Você está indicando que eu sou responsável pelos crimes que estão acontecendo?
Em parte considerável, sim. Entendam: 1) eu sou livre e posso comprar um relógio Vacheron Constantin, cujos modelos, por vezes, ultrapassam R$ 136.000,00, da mesma forma que posso usá-lo em qualquer lugar, afinal, é meu e paguei por ele. Entretanto, se me dispuser a ir a uma feira popular ou a uma favela, pode ser que volte sem ele, ou até mesmo não volte. 2) Você pode estar num restaurante chique, bem situado, mas ser vitimado por uma bala perdida de uma troca de comando na favela ao lado; 3) ou dirigindo seu carro pela rodovia, quando um motorista embriagado adentra ao leito carroçável e provoca um acidente, as 03 horas da manhã; 4) eu posso estar indo ao banco, fazer uso do caixa eletrônico após o expediente bancário e ser surpreendido por um assaltante etc.
Objetivamente, o que isso quer dizer é que, numa sociedade de risco, não há como esperar que a polícia estivesse vinte e quatro horas por dia, lhe garantindo a segurança e bem estar. Assim: 1) não era o local adequado para você estar com o relógio a tal favela; 2) a escolha do restaurante próximo à favela por de não ter sido a melhor escolha; 3) dirigir seu carro na rodovia as 03 da manhã pode ser pior do que durante o dia; 4) fazer uso de caixas eletrônicos nos bancos após o horário de expediente ao invés de procurar um em local público e de grande circulação pode ser mais perigoso.
São fatores que, embora desagradáveis aos mais radicais, fazem parte do momento social que vivemos e que o descuidado passa a pagar um preço, por vezes, alto demais.
Mas veja, vamos acrescentar mais uma teoria, o Agir Comunicativo:
- AGIR COMUNICATIVO
A teoria do agir comunicativo, desenvolvida por Jurgen Habermas, filósofo e sociólogo alemão, considerado como pertencente à denominada segunda geração da Escola de Frankfurt, também trazida a forma micro (cidadão), enseja a ideia de que vivemos em uma sociedade e, como tal, quando você se comunica com outra pessoa, estabelece um código de comunicação onde, cada qual, assume responsabilidades no diálogo, de tal sorte que, ocorrendo uma infração penal, há de se questionar qual a responsabilidade de cada um sobre o evento criminoso. É como se disséssemos: uma aluna vai a determinada faculdade com uma micro-saia e sem qualquer acompanhamento por baixo. Estando sem calcinha e deixando visível suas partes intimas, certamente encontrará aqueles que proferirão gracejos em sua direção, ou até mesmo partirão para condutas mais agressivas, como por exemplo aquelas ofensivas a sua honra ou a sua liberdade sexual.
Não quer dizer que não possa vestir-se a sua própria maneira, mas quer sim dizer que, diante do agir comunicativo, poderá, em eventual ocorrência de crime, minorar a pena do agressor (ela sabia que o local não era propício para aquela vestimenta e assumiu a responsabilidade de seus atos quando resolveu sair de casa assim).
Desta feita, se somos responsáveis por nossas atitudes, se vivemos numa sociedade inflada e, portanto, desprotegidos frente as inúmeras possibilidades de agressão aos nossos direitos e garantias fundamentais, temos que assumir responsabilidades e cuidados extras, para garantir nossa segurança e a segurança daqueles que nos cercam, sob pena de provocarmos condutas inadequadas e sermos responsabilizados por diminuir a reprimenda do verdadeiro responsável.
Vejamos agora a terceira teoria:
- IMPUTAÇÃO OBJETIVA
A teoria da imputação objetiva é aquela onde só pode ser responsabilizado penalmente por um fato, o agente que criou ou incrementou o risco proibido, sendo necessário que o resultado a que se chegou, tenha efetivamente decorrido do risco anterior.
É como dizer: só poderá ser punido o agente, por estritamente aquilo que tiver dado causa. Assim, nos exemplos anteriores: quando a moça foi a faculdade com a micro-saia, ela criou o risco e, lógico, o agente criminoso somente poderá responder pelo incremento; quando o sujeito saiu de casa com o relógio caro e foi a favela, ele criou o risco e, em eventual assalto, há que se ponderar qual a efetiva responsabilidade do agente, descontando a parcela de culpa da suposta vítima.
PANORAMA ATUAL
A nossa legislação tem previsão das teorias acima aventadas nos artigos 1.º, 13, 59 e 68, todos do Código Penal e, por esse matiz, dentro do critério apresentado, somos responsáveis por nossos atos de tal sorte que, ao sair de casa, devemos nos certificar de que não exista um assaltante em nossa porta à espreita; ao se dirigir a uma agencia bancária, que façamos no horário de expediente ou prefiramos caixas eletrônicos em supermercados, farmácias, lojas de conveniência; que ao nos deslocar para qualquer evento, trabalho ou laser, que façamos a escolha da vestimenta e horários adequados, com isso, cuidando de minimizar as possibilidades dos riscos oferecidos por uma sociedade inflada, que vai cobrar o nosso agir para estabelecer a pena do transgressor.
Não há como imaginar que voltemos no tempo e possam esperar por uma segurança do Estado quando na atualidade, não cumprimos a nossa parte.
É obrigação do Estado a proteção de bens jurídicos indispensáveis na medida em que o cidadão não colabore para a atividade criminosa e saiba como cobrar do próprio Estado a tutela necessária para recobrar a ordem; por exemplo, faço a minha parte ao entrar no condomínio dando uma volta no quarteirão e verificando a presença de estranhos próximo ao portão quando então, devo chamar a polícia e aguardar para entrar. Entretanto, se assaltos começam a ocorrer no meu bairro, cobro das autoridades mais policiamento no local para resolver aquele problema pontual.
Ora!
Se assim o é, e está na lei, exigir direitos, sejam eles constitucionais ou não, requer que saibamos como fazer e o façamos de forma consciente, através dos meios elencados.
No panorama atual, onde discutimos questões políticas e crimes de responsabilidade, por exemplo, não é aceitável que permitamos a permanência de políticos corruptos no poder e depois cobremos melhorias com o dinheiro que sabemos usado de forma indevida; da mesma forma que não é aceitável que para fazer prevalecer nossa opinião política, esqueçamos o diálogo e passemos a pancadaria ou depredação do patrimônio público, patrimônio este que serve a todos e que é precário diante de tanta corrupção; que queiramos cobrar direitos, mas não fiscalizemos onde está sendo empregada a cota-parte dos valores que pagamos nos impostos para cada setor e finalidade.
Uma sociedade pressupõe pessoas que assumam direitos e deveres, mas devemos lembrar que, no campo penal, as garantias e direitos individuais previstos em nossa Constituição, não foram feitos para você que lê este artigo, mas para aquele que praticou uma conduta criminosa e que, por força do Estado Democrático de Direito, faz jus ao devido processo legal, tem direito ao contraditório e a ampla defesa, terá a seu favor o direito aoin dubio pro reo(na dúvida, em favor do acusado), e tem resguardado o direito ao silencio, já que não está obrigado a produzir provas contra si, em razão da obrigação determinada de que quem acusa tem o ônus da prova.
Pensar que isso seria um exagero é desconsiderar que, talvez, em alguma situação futura, você possa estar envolvido em um cenário infracionário e, o desrespeito que hoje você encara como normal, pode estar a suprimir o direito que seria o divisor de águas na sua situação, mas que, por comodismo, você deixou de fiscalizar, aceitou que fosse suprimido, permitiu a manipulação do Estado Democrático e futuramente não poderá exigir.
No mesmo sentido, direito é política pura e, como tal, mais do que nunca a lucidez de Platão a Miguel Reale, devem estar presentes no pensamento de cada um, muitas vezes traduzidos nas frases celebres, que ora colacionamos:
Não há nada de errado com aqueles que não gostam de política, simplesmente serão governados por aqueles que gostam. (PLATÃO, s.d.)
Quando se pretende dissolver o estado na sociedade, pondo-se termo às relações de poder e de direito, caímos no equívoco do anarquismo que, de tanto se prevenir contra o poder, acaba sendo vítima do poder anônimo, tão condenável como o poder totalitário que aniquila as forças criadoras dos indivíduos e da sociedade civil(REALE, 2015).
Finalmente, cabe o pensamento de que uma Sociedade Democrática se faz com educação e saúde, sobretudo, com pessoas que conheçam seus direitos desde o primeiro dia nos bancos escolares e saibam como votar, exigi-los e fiscalizar o que está sendo feito com o seu aval, assumindo a responsabilidade de um pais melhor e prospero.
Referências:
BECK, Ulrich. La Sociedad del riesgo:Hacia uma nueva modernidad. Barcelona:Paidós, 2007
HABERMAS, J.Consciência moral e agir comunicativo.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
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