Um drama ético em três atos – ou quem tem MORO não precisa de RENÉ
Por Juarez Cirino dos Santos – 21/05/2017
1º Ato: o Juiz MORO e o Advogado de Defesa CRISTIANO, no interrogatório de LULA
Cena 1
O Juiz MORO pergunta a LULA: o Sr. ex-Presidente não vislumbra contradição ao dizer que não tem responsabilidade em todos esses crimes e que também não reconhece responsabilidades de pessoas que trabalham no partido e no governo?
A percepção do público
1) A contradição sugerida pelo ilustre Juiz não está na fala de LULA – que nega responsabilidade pessoal e de membros do partido e do governo –, mas nos processos mentais do Juiz, pelo conflito psíquico entre a fala de LULA e as convicções de MORO, no caso. A contradição é um conflito psíquico projetado.
2) De fato, a contradição é o objetivo aparente da pergunta, porque o objetivo real é a confissão ou delação de LULA – mais uma vez, MORO não se comporta como Juiz garantidor dos direitos humanos do acusado, mas como Inquisidor na perseguição de um criminoso.
3) Não obstante, o conflito psíquico de MORO é significativo: imputa negar responsabilidade por todos esses crimes, quando um Juiz deveria falar de responsabilidade por todos esses fatos. Logo, ao falar de todos esses crimes o Juiz indica ter prejulgado todos esses fatos, revelando óbvia suspeição para julgar o caso.
Cena 2
A Defesa de LULA intervém dizendo que o Juiz pede um posicionamento político do depoente (sic), orientando o interrogado para não emitir nenhum pronunciamento fora do processo.
A percepção do público
1) A intervenção da Defesa é necessária para proteção do acusado – em caso contrário, o acusado ficaria indefeso em interrogatório dirigido para confissão ou delação.
2) Mas o motivo da intervenção deveria ser outro, porque a pergunta do Juiz não tem por objeto posicionamento político do interrogado, mas obter confissão ou delação, por projeção da contradição entre a fala de LULA e as convicções do Juiz.
3) A intervenção da Defesa poderia denunciar esse conflito psíquico do Juiz, dizendo: a Defesa orienta o interrogado para não responder, porque com pergunta dirigida à confissão ou delação, o Juiz atua como Acusador.
2º Ato: a colaboração (não premiada) entre o Professor RENÉ e o Juiz MORO
Cena 1
O ilustre professor RENÉ DOTTI, Assistente de Acusação, interrompe a Defesa sem pedir licença ao Defensor (conforme a gravação), para dizer: o Juiz tem interesse em apurar o fato e as condições pessoais do acusado, na individualização da pena, se for o caso, seus antecedentes, sua personalidade, suas condições pessoais, sua moral, principalmente o caso moral – e olha na direção de LULA.
A percepção do público
1) No sistema acusatório, o interesse em apurar o fato é da Acusação – e não do Juiz, que deve se limitar a julgar o fato apurado pela Acusação. Aqui, o Assistente de Acusação, professor conceituado, erra na atribuição de papéis ao Acusador e ao Julgador.
2) A referência às condições pessoais do acusado é matéria de aplicação da pena, que pressupõe condenação criminal – e não matéria do interrogatório do acusado, momento de autodefesa que pressupõe presunção de inocência. Mais ainda, a individualização da pena referida pelo Professor, nada tem a ver com a negação de responsabilidade pelos fatos imputados, que é tema de autoria – no caso, de negativa de autoria. Assim, além de cancelar a presunção de inocência, o douto Assistente de Acusação parece confundir questões de autoria (matéria de tipicidade) com circunstâncias judiciais (tema de aplicação da pena).
3) Por outro lado, os antecedentes, a personalidade e a moral – principalmente o caso moral, como acentua o Professor – não têm relação com a negativa de autoria dos fatos imputados, objeto da pergunta do Juiz. E também nada tem a ver com a intervenção da Defesa para proteger o acusado contra perguntas do Juiz – no caso, dirigidas para confissão ou delação. Pior ainda: os antecedentes são restritos a condenações criminais transitadas em julgado – o que não é o caso de LULA – e são provados por documentos; a personalidade é um conceito indeterminável em Psicologia – ninguém sabe se está limitada ao ego, se abrange o superego ou, enfim, se inclui o id, como dimensões do aparelho psíquico –, portanto, é um conceito inútil no processo penal; e a moral é um conceito conservador, fundado nos preconceitos de classe das elites dominantes, ausente das circunstâncias judiciais de fixação da pena, além de constituir esfera estranha ao Direito, incompatível com aplicação da pena. Logo, para decepção de seus seguidores, o digno Assistente de Acusação parece ter sido vítima de desastroso delírio teórico sobre critérios de aplicação da pena.
Cena 2
O respeitável Assistente de Acusação diz, em crescente reação emocional, (a) que não está julgando ninguém, (b) que está justificando a pergunta do Juiz, (c) que o Juiz pode perguntar – que é a maneira de fixação da pena e (d) que o Juiz pode fazer isso, é a justificação da pena, a personalidade. Palavras textuais.
A percepção do público
1) Dizer que não está julgando ninguém é inconciliável com intervenção para falar de aplicação da pena e, no caso, a negação do preclaro Professor equivale a uma afirmação, como demonstra FREUD em A negação – portanto, o Assistente de Acusação já julgou e condenou LULA.
2) Ao insistir que está justificando a pergunta do Juiz, o Assistente de Acusação assume o papel de Advogado do Juiz, ignorando a separação de funções do sistema acusatório, e a conclusão de que o Juiz pode perguntar constitui a mais ociosa afirmação do óbvio ululante, como diria Nelson Rodrigues – porque esse poder é da natureza da função judicial.
3) Enfim, sustentar que é a maneira de fixação da pena, ou que o Juiz pode fazer isso, ou que seria a justificação da pena, ou a personalidade etc., é incorrer em graves equívocos conceituais, porque esse não é o método de fixação da pena, porque o poder do Juiz não depende de reconhecimento da parte, porque a pergunta do Juiz não tem por objeto justificar a pena – e, de resto, pela atitude emocional na audiência, a personalidade em evidência não parece ter sido a do acusado LULA.
Cena 3
O Juiz MORO, com o propósito visível de proteger a Acusação, diz para a Defesa, em voz pausada: O Doutor está falando, agora. Não é o seu momento! O Doutor tem falado nessa audiência o tempo todo, cansativamente. E conclui, em voz enfática: O Advogado está falando, agora!
A percepção do público
A ação de proteção recíproca do Assistente de Acusação em relação ao Juiz e do Juiz em relação ao Assistente de Acusação – uma hipótese impensável em relação à Defesa –, é sintomática: parece suspender o sistema acusatório, de separação dos órgãos do acusador e do julgador, e restaurar o sistema inquisitório pela reunificação dos órgãos do acusador e do julgador, contra a Defesa do acusado – aliás, um diagnóstico comum sobre a Operação Lava Jato.
3º Ato: um epílogo nada auspicioso
Cena 1
Estimulado pelo apoio do Juiz, o Assistente de Acusação enuncia um juízo ético: Parece que não se respeita a autoridade do Juiz!
A percepção do público
A questão não é o respeito à autoridade do Juiz, porque não existe hierarquia ou subordinação entre Advogados, Magistrados e membros do Ministério Público, todos devendo “tratar-se com consideração e respeito recíprocos” (art. 6o, Estatuto da OAB); porque, ao contrário do que insinua o renomado Professor, a Defesa não desrespeitou o JUIZ da causa; e porque a defesa criminal é direito e dever do advogado (art. 21, Código de Ética e Disciplina da OAB), que infringe o dever profissional se desamparar o constituinte.
Cena 2
O ilustre Assistente de Acusação recrimina o advogado FERNANDO FERNANDES (defensor de outro acusado), dizendo: Você continua falando sem pedir licença. Isso não se faz na audiência, evidentemente. E, naquele impulso de pedagogia ética, repete a lição moral: Não se faz numa audiência isso, evidentemente!
A percepção do público
A incoerência entre o que diz e o que faz o reconhecido causídico, é chocante: afinal, também sem pedir licença, o Assistente de Acusação interrompeu a Defesa, na primeira intervenção. Agora, na última intervenção, reprova de modo ríspido FERNANDO FERNANDES – um ético e competente advogado criminalista –, pela interrupção sem pedir licença. E anatematiza, em estribilho: Isso não se faz em audiência, evidentemente!
Cena 3
Em peroração moral sobre a Defesa penal, o insigne Professor de Direito vocifera, na audiência judicial: Proteste contra o Juiz, recorra contra o Juiz, mas não enfrente o Juiz pessoalmente na audiência!
A percepção do público
Como sabe o célebre Assistente de Acusação, a Defesa penal é independente, não se subordina a nenhuma autoridade do Estado – nem mesmo ao Juiz; a Defesa penal é autônoma – toda estratégia e táticas processuais se baseiam no exclusivo interesse do acusado; e a Defesa penal é conflitual, porque existe como fator de poder diante do Acusador e do Juiz, à disposição do cidadão necessitado de proteção – e existe como dever social em face do acusado em situação de conflito com o Estado. Logo, a Defesa penal tem o direito e o dever de enfrentar o Juiz, em especial na produção de prova em audiência, sob pena de deixar o acusado indefeso – um risco considerável perante um Juiz acusador.
Cena 4
Uma última diatribe contra o Advogado FERNANDO FERNANDES, também em estribilho: E você também, e você também, fala sem pedir licença! Dito isto, o distinto Assistente de Acusação joga-se para traz, na poltrona. E cai a cortina.
A percepção do público
A censura veemente parece ter traído o inconsciente psíquico do eminente Professor: a primeira fala é uma injusta censura do ego contra o sempre cortês FERNANDO FERNANDES; a segunda fala parece indicar uma reação do superego contra a ação do ego do sujeito da fala, que sabe não ter pedido licença para a interrupção da Defesa de LULA – por isso, é um ego com sentimento de culpa. Um epílogo digno do enredo: o Código de Ética foi ferido, a Advocacia criminal foi humilhada e a Defesa de LULA foi prejudicada pela ação inibidora do Assistente de Acusação – e tudo com o chancela do Juiz da causa.
FIM
Fonte: http://emporiododireito.com.br