Uma medida de constitucionalidade nas 10 medidas contra corrupção – Por Melina Girardi Fachin
Por Melina Girardi Fachin – 27/08/2016
É lugar comum se falar que há no Brasil a ‘cultura da corrupção’. Em 1971, Keith S. Rosenn, professor da Ohio State University, constatou isso de forma acadêmica em artigo intitulado The Jeito, no qual, fazendo alusão ao afamado “jeitinho brasileiro”, Rosenn faz menção ao desvio institucionalizado do sistema jurídico brasileiro e a dificuldade nacional em cumprir leis. Mesmo que coubesse uma crítica (de todo indevida no caso) em relação à constatação do problema por um estrangeiro, em especial um estadunidense, importa consignar que é esta a nossa percepção sobre nós mesmos segundo o IPCLBrasil (Índice de Percepção do Cumprimento da Lei – FGV), 82% da população acredita que é fácil desobedecer às leis no Brasil.
A honestidade é, além de imperativo ético, dever legal, decorrente do princípio constitucional da moralidade. A magnitude do tema torna imperativo o enfrentamento da questão.
A voz corrente condena a corrupção, por isso é importante começar destacando o óbvio: salvo exceções absurdas (e normalmente não confessadas), nenhum cidadão apoia a corrupção. A pesquisa da IPCLBrasil/FGV demonstra isso: 80% dos brasileiros avaliam negativamente o descumprimento das leis (pelos outros). Ressalto isto porque a mesma investigação mostra altos índices de confissões em relação a ter já praticado atos de descumprimento da lei. Nota-se, portanto, uma clara duplicidade de padrões. O que suporta isso é um feixe complexo de causas de múltiplas naturezas (histórica, cultural, social, econômica…).
Disso tudo tiramos duas constatações: 1) temos mesmo uma configuração institucional relacionada ao não cumprimento da lei e à prática da corrupção; 2) isso é um problema e precisa ser solucionado.
A questão que se põe é justamente quais são as soluções para esse quadro de coisas que não é apenas moral e individual; mas institucional e sistêmico.
É justamente neste cenário que avulta, com a força da popularidade da operação ‘Lava Jato’, as 10 medidas contra corrupção propostas pelo Ministério Público Federal, vertidas em projeto de lei de iniciativa popular. É elogiável, por evidente, a intenção do Ministério Público, mas não bastam boas intenções.
Se estamos de acordo com a premissa motivadora das medidas, pois, de fato, é necessário romper com o ciclo vicioso da corrupção em nosso país, divergimos no sentido essencial das soluções apontadas.
A dezena de medidas que anuncia ter como foco alterações estruturais e sistêmicas necessárias para prevenir e reprimir a corrupção de modo adequado centra-se, grandemente, na tônica repressiva do aumento da punição e apenamento do idioma do direito penal, muitas vezes às custas de garantias constitucionais muito caras.
A única medida que possui enfoque preventivo, dissociada da tônica punitivista, nem sequer menciona a questão da educação como uma das pedras angulares para a mudança de cultura. Se a corrupção é uma cultura arraigada, apenas a formação de uma nova cultura – na qual a educação para cidadania e direitos é crucial – terá o condão de mudá-la. O mais perto disso que se chega é a proposta de dotação orçamentária específica para propaganda de estímulo a uma cultura de intolerância à corrupção – o que nos parece mínimo diante do estado de coisas postas. Ainda, como medida preventiva, há a abstrusa proposta da realização de “testes de integridade por parte dos agentes públicos” numa espécie de pegadinha típica dos programas dominicais de mal gosto que parte do pressuposto da desonestidade como regra.
A resposta oferecida pelas “10 medidas”, ao dialogar quase unanimemente com o idioma do direito penal – que deveria ser a ultima resposta que o Estado oferece, pois é o uso da violência institucionalizada – mostra-se impossibilitada de oferecer uma solução de ruptura já que não investe na prevenção do problema, mas sim em ataca-lo uma vez ocorrido. Mudanças comportamentais institucionais, investimentos reais e efetivos em educação, questões do financiamento eleitoral e a contratação de serviços estatais, eis os pontos necessários para pensar o futuro e as soluções. Sobre eles, silentes as propostas.
Afora isso, o maior problema nas tais medidas é a flexibilização de garantias constitucionais integrantes do estatuto de proteção dos direitos fundamentais e do sistema internacional de proteção dos direitos humanos do qual o Brasil é signatário. Cite-se, a título de exemplo: a proposta de punição penal mesmo quando não for possível descobrir ou comprovar quais foram os atos específicos de corrupção praticados viola a tutela constitucional penal da estrita legalidade; as restrições sugeridas que amesquinham o writ do habeas corpus; a proposta que amesquinha a presunção de inocência até o trânsito em julgado; a aceleração de prazos e procedimentos que podem colidir com o direito à ampla defesa e contraditório no caso concreto; ampliar as preclusões de alegações de nulidades às custas do devido processo legal; a possibilidade de prisão preventiva para reaver valores desviados subverte o comando constitucional que afirma que ninguém será preso por dívidas; a possibilidade de confisco alargado decorrente da prática delituosa também pode usurpar as fronteiras da legalidade penal estrita e da proteção constitucional ao patrimônio.
Os exemplos dados não apenas arrepiam o garantismo constitucional que nos é assegurado justamente para poder-se passar com segurança por momentos turbulentos, mas também não vão ao cerne da questão.
Reitero o acima exposto, não há dissonância na necessidade do combate à corrupção. Apenas se espera que seja substancial, institucional e sistêmica, e não se traduza também em combate à Constituição.
Melina Girardi Fachin é professora da Faculdade de Direito da UFPR e sócia do escritório Fachin Advogados Associados.
Fonte: http://emporiododireito.com.br/