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Uma nova crônica de Heráclito: o Homem e o Rio no Sistema Penitenciário Federal

Por: Flávia Fróes
Apreensão. Mãos suando.
Um velho filme que insistia em me povoar a mente. Sob o calor escaldante do sertão nordestino chego, enfim, ao meu destino. E a natureza com os seus caprichos fizeram-me ironicamente confrontar com um dos meus maiores medos: milhares de besouros vivos que formavam tapetes móveis por toda a parte da Penitenciária. Hesitei em entrar. Quis voltar logo na minha chegada. O pânico em lidar com aqueles insetos que tanto medo me causava na infância dominava a adulta que diziam não ter medo de nada.
Dominei a mim. Respirei fundo e segui em frente.
Já na pequena sala destinada ao atendimento com advogados, de frente para o interfone e o vidro blindado que presenciariam junto com os espectadores das muitas câmeras e microfones que guarnecem a sala aquele reencontro, me ative em vasculhar a presença dos tais besouros, já em menor número do que na minha entrada. Atenta ao movimento dos insetos que a mim ainda amedrontavam nem percebi a chegada do meu interlocutor.
Já não era aquele homem, ex cliente de outrora,  que há uma década travara comigo acalorada discussão.
Vi em seu semblante a dor do tempo, da tortura e da desumanização que lhe foi imposta pela crueldade de um sistema que oculta interesses perversos.
Com a mão ao vidro na saudação possível que aquele ambiente propicia, por um instante me coloquei em genuflexão rogando amparo divino àquele irmão.
Em cada palavra que lhe ouvia e em cada palavra que levava percebi que apenas um alimento sustenta aquela vida despedaçada: A FÉ.
Mas o efeito devastador de vinte e um anos de prisão, sendo os últimos dez no desumano sistema penitenciário federal se via no seu rosto , nos seus movimentos em alguns cacoetes adquiridos naquela penosa e longa estadia. Não pudemos ainda medir os danos graves causados por um longo tempo de uma pena cruel que se perpetua na desumanização pelo adestramento de seres afastados de seus semelhantes em solitária e banidos de suas origens e familiares.
Para que serve a pena? Pensei enquanto ouvia atenta ao meu aguerrido interlocutor.
Embora aparentemente preservadas as argumentações e seu raciocínio cognitivo, minha percepção gritava o sistema o fez adoecer.
Dez anos antes, quando era ele um “recém-chegado” naquele modelo de masmorra moderna, suas reações eram absolutamente diversas.
Vi hoje um homem esculpido pela literatura de dez anos de sistema de tortura federal, cuja percepção humana está seriamente afetada. O mundo exterior àquele universo paralelo para o qual fora ele banido era agora uma mímica daquilo que a mente já não consegue reproduzir.
Morte perpétua, aquela, destinada aos párias da nação nos tempos do império; era ela que via desenhada naquele rosto magro e naqueles olhos de desespero disfarçado. Lembrei-me do mestre Carnelluti e sua metáfora do condenado como o “sepultado vivo”. Em Vinte e um anos de carreira nunca fez para mim tanto sentido.
Refletindo ali sobre o papel do sistema punitivo em nossa sociedade  compreendi ali a esquizofrenia a que entregamos outros seres humanos ao argumento da defesa social.
E quando mergulho sob essa alma humana é com a certeza de Heraclito que compreendo que agora é um outro Rio e eu e ele outras pessoas.
Já não conseguimos nos  calar diante da indignação de saber que estamos fazendo tudo errado. Não nos protegemos de nada. A cada novo ano que o sistema mantém aquele homem naquelas condições, declara inútil todo o trabalho de “isolamento” de uma década.
Afirma-se, sem pudores, que esse sepultado-vivo lidera um grande exército de homens, uma organização criminosa. Argumenta-se que, em que pese os dez anos de seu banimento, ele continua exercendo sua liderança. Não existe nada mais esquizofrênico do que dizer que embora ministrado em doses cavalares um medicamento e ele não ter produzido resultados, a solução é a continuidade de um tratamento reconhecido inócuo por quem o prescreveu.
O mais grave é que outros miseráveis de toda parte lhe compartilham a experiência cruel. Como náufragos que se encontram na mesma ilha longe de suas famílias e amigos criam novos laços de sobrevivência. De toda parte do país se reúnem presos que experimentam a mesma experiência insalubre e que buscam uns nos outros a resistência para manter o já remoto equilíbrio emocional.
Mas eles partem, voltam as suas origens, porque o sistema, em tese, foi criado para resolver situações de emergência promovendo afastamento temporário. Contudo eles já não vão sós. Levam com eles os laços criados pela convivência na dor com alguém que a eles estendeu a mão, mas que ficou para trás. Há quem possa falar em ideologização dos presos que se espalharam país a fora. Para nós, seria relativizar algo muito mais complexo…
Não é novidade para ninguém as parcerias criadas entre chamadas “facções criminosas” de todo país, hoje assemelhando-se a acontecimentos da américa latina com o fortalecimento dos Cartéis de Narcóticos.
A permanência ilimitada de presos do Rio de Janeiro no sistema penitenciário federal não só tem se demonstrado meio ineficaz de combate ao tráfico ou a violência como tem se materializado em grande perigo ao sistema penitenciário de todos os estados e à segurança pública de todo o país. A quebra do pacto federativo pelo Estado do Rio de Janeiro em circunstâncias tais há de ser estudada posto que a criação do sistema federal como contingencial e de emergência foi desvirtuada e subvertida por uma política de segurança pública hoje reconhecidamente falida e ineficaz praticada por um grupo político que governou pela última década o Estado.
Os responsáveis do poder executivo por tais políticas de segurança que nortearam ações conjuntas com o poder judiciário hoje cumprem prisão ou estão sob investigação por medidas que faziam parte desse mesmo “pacote de proteção da sociedade fluminense”.
A ciência costuma afirmar que a vida encontra meios na adversidade, transmutando-se em outro para sobrevivência.
Centenas de presos morreram em guerras travadas depois das alianças criadas pelo banimento de condenados fluminenses e de outros estados.
Enquanto isso os laços de sobrevivência continuam sendo o meio de equilíbrio de quem vive através do outro a humanidade que lhe foi negada.
A vida não é agora senão uma mímica e as marionetes a manifestação do alter ego de quem deixou de viver.
Mas para o inferno de Dante a solução é reconhecer que tomamos um caminho perigoso e tentarmos fazer o caminho de volta. Humanização: Direitos humanos para SERES HUMANOS.

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