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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, PANDEMIA E INEFICÁCIA DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL: UMA PERSPECTIVA CRIMINOLÓGICA

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, PANDEMIA E INEFICÁCIA DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL: UMA PERSPECTIVA CRIMINOLÓGICA

Maria Júlia Poletine Advincula

1. DESAFIOS DA REDE DE PROTEÇÃO À MULHER EM MEIO AO SURTO DO COVID-19


O aumento da violência doméstica contra mulheres foi constatado em vários países desde o início do isolamento social, decorrente do surto pandêmico de COVID-19. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS)[2], a quarentena provocou uma potencialização, a nível global, dos conflitos domésticos em que vítimas são mulheres e meninas. No Brasil não foi diferente. Desde março, houve expansão significativa no número de ligações para o Ligue 180, vinculado ao Governo Federal[3], em relação ao primeiro semestre de 2019. De acordo com a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), tal crescimento esteve diretamente relacionado à pandemia do novo coronavírus. Nessa perspectiva, conforme a ONU Mulheres[4], o contexto de pandemia é propício para o aumento dos riscos de violência contra mulheres e meninas, ainda mais a doméstica, pois, além das tensões e do isolamento ocorrerem no mesmo ambiente, “as sobreviventes da violência podem enfrentar obstáculos para fugir de situações violentas ou acessar ordens de proteção que salvam vidas e/ou serviços essenciais” (ONU MULHERES, 2020, p.2).

A ONG Think Olga[5], por meio de relatório recente, listou alguns desafios enfrentados pelas vítimas e também pela rede de apoio e acolhimento que – muitas vezes – não conta com a estrutura necessária para fazer atendimentos à distância. Logo, não bastasse toda uma problemática do COVID-19 per si, qual seja o isolamento social obrigatório e lockdown em algumas cidades, que obriga as mulheres a estarem em contato direto e constante com seus agressores, há uma modificação, também, quanto ao atendimento à mulher em situação de violência. Esta já anteriormente alarmante e que foi, na verdade, potencializada com as medidas de prevenção ao novo coronavírus; as quais não levaram em conta, porém, a pandemia da violência doméstica existente no país.

À vista disso, seja por medo de contaminação, pela ausência de espaços públicos – e capacitados – que ofereçam acolhimento, a julgar pela impossibilidade de se abrigar na casa de terceiros (vizinhos, amigos e familiares) e pelas restrições de atendimento na rede de serviços (delegacias, hospitais, Ministério Público, Defensoria Pública, CRAS/CREAS, SUS, etc), há um silenciamento ainda mais intenso dos casos de violência doméstica contra mulheres. É considerando estas dificuldades que inclusive a Organização das Nações Unidas (ONU)[6] se posicionou no sentido de recomendar aos países-membros o incentivo ao atendimento online, declarar abrigos como serviços essenciais, além de criar maneiras seguras para as mulheres procurarem apoio (sem alertar seus agressores) e ampliar campanhas de conscientização pública, principalmente voltadas para homens e meninos. À vista disso, percebe-se a necessidade de uma resposta rápida dos serviços de proteção e socioassistencial do Estado em todas as suas esferas.

Ainda assim, acredita-se que a subnotificação nesses casos seja considerável, principalmente quando levamos em conta que a mulher em situação de vulnerabilidade está muitas vezes em contato direto com o seu agressor (ou agressores) durante a reclusão, dificultando ainda mais o recolhimento dessas denúncias pela rede de apoio. Isto pode ser uma explicação para o fato de que, em alguns Estados, a exemplo de Pernambuco[7], dados acusam uma diminuição nos pedidos de medida protetiva e registros de boletins de ocorrência relacionados a tais casos, desde o início do isolamento social.

Em Recife, na 2ª Violência Doméstica e Familiar Contra Mulher (VDFM), a modalidade de acolhimento por telefone foi uma inovação do Projeto Novo Acolher (formado pela equipe multidisciplinar da Vara) em tempos de quarentena. Mas, vale ressaltar que “um ponto negativo dessa medida telefônica é a falta de acesso que muitas mulheres têm aos meios digitais, principalmente aquelas de classes sociais mais baixas” (ADVINCULA, NASCIMENTO, 2020)[8]. Ou seja, apenas uma mulher específica acaba recebendo essa acolhida, que não comporta todas as nuances interseccionais, como raça e classe. Logo, o momento de pandemia atual só reforça a dificuldade do Sistema de Justiça Criminal em amparar todas as mulheres de forma igualitária, seguindo suas desigualdades sociais já recorrentes nos atendimentos presenciais. Muitas mulheres continuam a viver sob um isolamento tão pandêmico quanto o COVID-19, apesar de o sistema só conseguir, na maioria das vezes, ofertar uma resposta punitiva.

Seguindo o pensamento de Bianchini (2014)[9], a Lei Maria da Penha possui apenas um recorte criminal, não sendo apenas uma legislação punitiva como se costuma pensar. Nesse sentido, a lei proporciona instrumentos que possam ser utilizados pela mulher vítima de agressão ou de ameaça, tendente a viabilizar uma mudança subjetiva que leve ao seu empoderamento, no que tange ao enfrentamento do ciclo da violência. Esta violência, de caráter transgeracional, é perpetuada no espaço doméstico como uma herança maligna que se perpassa ao longo dos séculos, só poderá ser enfrentada totalmente após um diálogo intenso com a prevenção ou redução da mentalidade social machista, culminando-se com a alteração da cultura patriarcal. Quando se fala sobre o ciclo da violência, é importante pontuar o aspecto da rotinização e normalidade das agressões no cotidiano, sejam elas físicas, psicológicas, sexuais, patrimoniais, morais, etc., principalmente quando a convivência entre abusador e vítima passa a ser constante. Desse modo, é essencial e urgente refletir sobre medidas de prevenção, não obstante a mentalidade punitiva em voga, para incentivar a necessidade do acolhimento e recuperação das meninas e mulheres em situação de violência doméstica, ainda mais em tempos de silenciamento extremo, dentre as quatro paredes de um lar (não tão doce) lar.

1.1DIREITO PENAL ANDROCÊNTRICO: DA NECESSIDADE DE MÉTODOS ALTERNATIVOS


Conforme defendido por Mendes (2020)[10], o medo do agressor é capaz de calar as mulheres em situação de violência. Além de tal receio pode haver, ainda, um sentimento de desconfiança sobre as verdadeiras intenções do nosso burocrático processo penal, visto que é notadamente conhecido pela revitimização compulsória, seja no imaginário popular ou nas estatísticas acadêmicas. O grande desafio da Criminologia – principalmente sob o viés crítico -, é compreender formas de tornar a Lei Maria da Penha mais eficiente em sua prática (como esta possível suspeita das mulheres em relação ao próprio sistema de justiça criminal), ainda mais quanto ao enfrentamento de situações desafiadoras trazidas com uma pandemia. Em momentos de crise, entende-se mais ainda que a Lei Maria da Penha necessita ser interseccional, além de interdisciplinar – em comunhão com os conceitos da antropologia, biologia, sociologia, filosofia, medicina, psicologia e Criminologia Feminista -, pois, sozinha, não comporta as necessidades das diversas mulheres em seus mais diferentes contextos sociais.

Nessa perspectiva, conforme já pontuado, por mais que a Lei 11.340/06 traga aspectos de proteção às mulheres, sua aplicação possui foco majoritário no jus puniendi, quando, na verdade, é uma lei que deveria evidenciar o aspecto preventivo e, ainda, uma prevenção dirigida a mulheres e homens. No entanto, em alguns Estados quiçá há equipes multidisciplinares com formação em gênero, o que dificulta o atendimento especializado a essas mulheres (MELLO, 2014)[11]. Assim sendo, fica claro o interesse estatal em produzir inquéritos e sentenças condenatórias, sem buscar compreender o fenômeno conflituoso, tampouco promover a reparação de danos. Aqui trazemos uma balança inexistente entre as medidas criminais, medidas de proteção e medidas assistenciais de ressocialização, a qual se observa claramente no período pandêmico decorrente do COVID-19, já que as mulheres que procuram a rede de apoio acabam se deparando com a ineficácia de um Sistema de Justiça Criminal falido, incapaz de comportar seus anseios mais subjetivos. Ainda mais por ser totalmente pautado em um “labirinto androcêntrico”, possuindo, na verdade, respostas padrão não às condições concretas de cada caso, mas uma visão masculinizada, que toma como parâmetro o homem comum, o homem médio; assim, as mulheres tendem a não se sentirem satisfeitas dentro do seu próprio processo, que não as comporta nem as representa.


Acaba sendo contraditório, então, evocar um sistema que reproduz as desigualdades de gênero em todas as suas formas, ofertando meramente simbolismos ineficazes de compreender, evitar e lidar com o conflito de gênero – e, mais notadamente, na violência doméstica (ANDRADE, 1999[12]; BARATTA, 1999[13]; KARAM, 1996[14]). Essa demanda punitivista não traz uma proposta de transformação social, podendo ser, inclusive, um retrocesso para os movimentos feministas que buscam o empoderamento da vítima dentro do “seu” processo (ZAFFARONI, 2000[15]). Conforme já defendido, o sistema punitivo muito provavelmente irá revitimizar a mulher, pois oferta uma lógica de violência que, em sua essência, se mantém a base de estereótipos de desigualdades de gênero. Nesse sentido:

Soma-se a isso, infelizmente, a ausência de uma política nacional de enfrentamento à violência. Diante da redução de orçamentos e serviços, a Lei Maria da Penha se torna cada vez mais refém da aplicação apenas no âmbito da justiça; consequentemente, as mulheres ficam reféns também das situações de violência que vivenciam. (PASINATO, 2017, p. 201, grifos nossos[16])


Principalmente em momentos de crise, a necessidade de se pensar para fora do Sistema Penal vem à tona. As políticas públicas de enfrentamento e proteção, tão mitigadas, inclusive vêm sofrendo o movimento de cortes, não de incentivos (com número insuficiente de atores, centros de referência defasados, desfoque do aspecto educativo, etc). Ainda de acordo com Pasinato (2011, p. 137), essas equipes multidisciplinares, em muitos Estados, “funcionam precariamente, com poucos profissionais, às vezes apenas com atendimento psicológico ou apenas de serviço social”[17]. É de se pensar, à vista disso, que a resposta mais adequada aos anseios das protagonistas do conflito doméstico não se encontra nas vias penais.

2. PESQUISA SOBRE RELACIONAMENTOS ABUSIVOS DURANTE O PERÍODO DE ISOLAMENTO SOCIAL


No intuito de observar alguns casos de violência doméstica durante o isolamento social, um formulário foi organizado pelas autoras[18], de preenchimento online, além de totalmente anônimo, o qual obteve 42 (quarenta e duas) respostas no total. As perguntas foram organizadas da seguinte forma, a serem respondidas pelas mulheres sobre: se sofreu ou se conhece outra mulher que tenha sofrido violência doméstica durante a pandemia; em caso afirmativo, que indicassem quais, tendo como parâmetro o art. 7º da Lei 11.340/06, quais sejam a física, psicológica, sexual, patrimonial, moral ou, ainda, o campo “não sei identificar”; caso tenham procurado o Judiciário para relatar alguma agressão, se conseguiu ser atendida satisfatoriamente; por fim, em relação à violência psicológica, priorizada no questionário por, geralmente, ser a mais invisibilizada e difícil de constatar nos casos concretos (HIRIGOYEN, 2006)[19], que citasse os tipos que conseguisse identificar dentre: ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração/limitação do seu direito de ir e vir, ciúme patológico, atos de intimidação ou outra.

À vista disso, através de pesquisa com enfoque qualitativo-quantitativo, foi possível colher relatos e experiências de vítimas de violência doméstica durante a pandemia. Alguns trechos, transcritos a seguir, foram organizados em 5 (cinco) grupos: medo, dependência, vergonha, manipulação e culpa, a depender da narrativa apresentada pela mulher, para identificar certos padrões de repetição emocional. Portanto, quanto à metodologia, utilizou-se de dados qualitativos obtidos na análise de conteúdo das respostas obtidas no questionário, que consistem em uma amostra por conglomerado dos dados. Essas respostas formaram um banco de dados, analisados à luz de uma prévia classificação epistemológica sobre violência psicológica contra a mulher, seguindo o disposto na legislação específica (Lei Maria da Penha) e na doutrina, já que Marie-France Hirigoyen ainda acrescenta as hipóteses não expressas em lei de ciúme patológico e atos de intimidação. Nesse sentido, a importância de se estudar, dentro do recorte da violência doméstica contra a mulher, a violência psicológica, advém de sua dupla invisibilidade – por ser um conflito de gênero e, dentro deste, ainda não ser compreendido e exemplificado. Assim,

Temos condutas descritas, porém genéricas e sem sanções atribuídas, as quais necessitam de estudos mais aprofundados com profissionais das áreas de saúde; levanta-se a teoria de que, por conta do alto grau de subjetividade da violência psicológica, a dogmática pura do direito penal não consegue captá-la em seus pormenores (ADVINCULA, 2020, p. 371, grifos nossos[20]).


No questionário, optou-se conceituar a violência psicológica conforme preceitua a Lei Maria da Penha o que, destaca-se, é um conceito meramente interpretativo, configurando uma lacuna legal, inclusive (MACHADO, 2013[21]). Com essas explicações, é necessário apontar, também, que os dados quantitativos são resultado do levantamento de informações acerca do fenômeno estudado e implicam em uma melhor contextualização com o levantamento etnográfico de que se tratou o estudo de casos.

2.1Da análise qualitativa


Das mulheres que responderam a pesquisa, apenas 11 (onze) optaram por dar o seu depoimento. Todos, na íntegra, foram transcritos a seguir, com leves adequações ortográficas para melhor entendimento do leitor.

Caso 1. Não tenho certeza se vou denunciar, minhas amigas dizem que sim, mas ainda penso o quanto vai ser moroso isso para mim e que de fato posso acabar com a vida dele, isso acaba tendo um certo peso. (…) É uma situação que só quem vive que sabe como é duro e como deixa um trauma tão absurdo. Hoje vou em busca da minha cura psicológica, porque as marcas físicas já passaram, fica só a lembrança de algo que parece um filme.


Caso 2. Passei por tudo isso com o ex, me separei em janeiro e nesse tempo e processo ele tem sido horrível, da mesma forma que no casamento.


Caso 3. A violência que eu sofria já acontecia, não foi intensificada na pandemia. 2.1.3 Vergonha

Caso 4. Havia terminado o relacionamento, ele não aceitou. Mesmo com outra mulher, me procura e finge que a vontade de vê-lo é totalmente minha. Sendo que frágil (por conta da humilhação e do isolamento pelo COVID), eu acabava cedendo às vontades dele.


Caso 5. A pessoa não respeita quarentena.


2.1.4 Manipulação


Caso 6. Confusão mental[23].


Caso 7. Desde que pedi a separação, ele me manipula e não conseguimos entrar num acordo para se distanciar. Ele ao mesmo tempo em que diz que me ama, me insulta, me vigia e ameaças outras pessoas pra tentar me atingir.


Caso 8. Um relacionamento que só me fez mal, quando percebi que estava numa relação abusiva, tentei terminar de várias formas, hoje conduzo minha vida longe do agressor, ele está bloqueado em todas as minhas redes sociais, por sorte eu consegui sair, porém não é a realidade de muitas mulheres.


2.1.5 Culpa


Caso 9. A pessoa que conheço que sofreu foi uma vizinha. Ela foi agredida pelo pai em um episódio durante uma briga. Ouvimos gritos e vimos o movimento da janela. chamamos a polícia. Ele saiu de casa antes da viatura chegar, ela respondeu algumas perguntas a polícia e ficou por isso. Acredito que ela tenha optado por não abrir B.O. Não sei bem. Só sei que mais tarde ele voltou pra casa.


Caso 10. Meu marido coloca a culpa de todos os erros dele, em mim. Se ele me trai é porque eu não sou suficiente para ele, porque não me cuido, porque estou acima do peso, porque não quero transar o tempo todo. Isso faz com que eu me sinta muito inferiorizada e com baixa estima. Ainda não consegui sair dessa relação, por possuir uma dependência financeira.


Caso 11. Silêncio e indiferença. Explosões de raiva sem motivo forte. Com relação à violência patrimonial: vivemos juntos há 25 anos e não participo do patrimônio do casal. Não tenho acesso à conta bancária e aplicações financeiras. Depois dessas brigas ele me pune com o silêncio e a indiferença.


2.2ANÁLISE QUANTITATIVA


2.2.1Se sofreu algum tipo de violência doméstica durante a pandemia


Mulheres entre 19 e 66 anos responderam ao questionário, as quais se identificaram como residentes nos seguintes estados: AL, MG, MS, PB, PE, RJ, RS, SP e, ainda, uma mulher de Portugal. Dentre elas, 42% alegaram terem sofrido algum tipo de violência doméstica (física, psicológica, sexual, patrimonial, moral e/ou outra) durante a pandemia.


Figura 1 – Se sofreu algum tipo de violência doméstica durante a pandemia


2.2.2 Se conhece alguma mulher que sofreu qualquer tipo de violência durante a pandemia


Das 42 (quarenta e duas) mulheres entrevistadas, 43% alegou conhecer outra mulher (amiga, colega de trabalho, familiar, conhecida vizinha, etc) que sofreu algum tipo de violência doméstica desde o início do isolamento social.


Figura 2 – Se conhece alguma mulher que sofreu violência doméstica durante a pandemia

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