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​O INTOLERÁVEL DESVIO DE EXECUÇÃO NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO EM TEMPOS DE COVID-19: ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL REFORÇADO PELA MORTE E SUPRESSÃO DE DIREITOS

O grau de civilização de uma sociedade pode ser medido pela maneira como tratam seus prisioneiros. (FiódorDostoiévski)

José Adaumir Arruda da Silva

Defensor Público do Estado do Pará, mestre em Direitos Humanos pela UFPA, doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

No romper do ano de 2019 o mundo foi surpreendido com uma nova ameaça global, a Covid19, provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, doença reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS)como uma pandemia que já infectou, em todo o planeta, mais de 122 milhões de pessoas, das quaismais de2.600 milhões vieram a óbito.

No Brasiljá foram confirmados mais de 11 milhões de casos, com números que ultrapassam 292 mil óbitos, o quedemonstra o elevado nível de contágio e letalidade da doença.A pandemia no país está longe de ser controlada, a quantidade de mortes e de novos casos diários é alarmante e o programa de vacinação caminha a passos lentos,não alcançou 5% da população até o presente.

Nesse contexto, várias medidas foram e estão sendo tomadas pelo Poder Público para conter a expansão do vírus, inclusive com a decretação de lockdown em várias cidades do país no intuito de proteger a população livre. No entanto, a mesma preocupação, observadas as peculiaridades, não se teveou se tem com as pessoas que estão em nível de elevadavulnerabilidade, a população aprisionada nos cárceres brasileiros.

A OMS considera que as pessoas encarceradas estão mais propícias ao surto da Covid-19, devido à aglomeração forçada inerente ao ambiente prisional, que constitui um fator de potencial amplificação e disseminação de doenças infecciosas. Por outro lado, é notório que a população carcerária está mais sujeita a problemas de saúde do que a população livre, em decorrência das condições insalubres dos presídios e a debilidade do sistema imunológico das pessoas presas, afetadopelos altos níveis de estresse, deficiência alimentar, falta de exercícios físicos e exposição ao sol, e,por muitas vezes, já estarem acometidas por outras doenças.

Nos presídios do Brasil, no período de 30.03.2020 a 08.03.2021, foram infectadas pelo novo coronavírus 48.143 pessoas, das quais 147 morreram em decorrência da Covid-19.Note-se que,em comparação com a população brasileira, a taxa de infecção foi 47% maior, apesar de uma letalidade em índice menor, o que reclama uma especial atenção para com este segmento da sociedade.

A pena privativa da liberdade no Brasil deve ser executada dentro de determinados contornos fixados por princípios constitucionais e legais. De partida, o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III), de onde se extrai a base de validade das demais normas, notadamente àquelas que tratam de direitos fundamentais, como a vida, liberdade e saúde.

Pois bem, ainda no âmbito constitucional observa-se a preocupação do constituinte originário em enfatizar a excepcionalidade da prisão, quando, como e em que condições se autorizam (art. 5º, LXI), determinando limites ao poder punitivo do Estado, para ena constrição da liberdade individual, expressamente consignando normas que devem nortear a pena de prisão:princípio da legalidade (art. 5º,XXXIX);princípio da intranscendência (art. 5º, XLV);princípio da individualização da pena (art.5º, XLVI); princípio da humanização da pena, quando veda penas cruéis (art. 5º, XVII, “e”, e assegura respeito à integridade física e moral da pessoa presa (art.5º, XLIX).

Por outra banda, masperseguindo os mesmos fins, a Lei nº 7.210/1984 (Lei de Execução Penal)apresenta, já no seu introito, que a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado (art. 1º). Dito de outra forma, a pena privativa da liberdade deve ser executada nos limites estritos do que dispõe a sentença condenatória ou contido na decisão judicial, tudo para favorecer a reinserção social da pessoa condenada ou em cumprimento de medida de segurança.

Não se pode descuidar que ao condenado e ao internado sejam assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei (art. 3º da Lei nº 7.210/84), o que se inclui o direito à saúde, previsto constitucionalmente (art. 196 da CF/88).

Portanto, o juiz, ao sentenciar, deve observar a Constituição e asleis, e, nos atos decisórios no curso da execução da pena, cumprir aquelas e o determinado nos estritos limites do comando condenatório, o contrário configurariaato eivado de inconstitucionalidade e ilegalidade, caracterizando intolerável excesso ou desvio de execução.

A Lei de Execução Penalpreviu que haverá excesso ou desvio de execução sempre que algum ato for praticado além dos limites fixados na sentença, em normas legais ou regulamentares (art.185). O excesso é defácil constatação, pois se refere a uma exacerbação quantitativa da pena ou medida de segurança, um tempo de punição maior ao que foi fixado na sentença.

Questão mais tormentosa está na configuração do desvio de execução, muitas vezes adornado com justificativas aparentemente idôneas, como se observa com relação ao enfrentamento da Covid-19 nos presídios brasileiros. Ocorre o desvio quando durante a execução penal surgem onerosidades, sujeições, supressão de direitos ou quaisquer outros eventos não previstos na sentença, e, portanto, não albergados na Constituição Federal de 1988 e nas leis. Trata-se de um constrangimento ilegal que viola qualitativamente a regular execução da pena e os contornos da sentença condenatória ou decisão proferida no transcurso da execução penal.

Ora, sabe-se do elevado potencial contagioso e letal do novo coronavírus; sabe-se que enquanto a população não estiver vacinada os riscos são iminentes. Assim, o distanciamento social é uma medida que se impõe e que é operacionalmente impossível dentro dos cárceres brasileiros,notoriamente superlotados.

A pena privativa da liberdade não atinge o direito à saúde, nem tampouco impõe o risco de vida ou de morte, como queiram. Da forma que medidas excepcionais foram e estão sendo adotadas para prevenir a doença e salvar vidas da sociedade livre, por igual deve ocorrer em relação àquela parcela da sociedade, ainda mais vulnerável, que se encontra aprisionada e sob a tutela direta do Estado. Digam-se, medidas proporcionais e adequadas, que a só tempo resguarde a integridade física e mental da pessoa presa, sem, contudo, subtrair-lhe direitos, quando se adota a forma mais fácil para resolver o problema, transferindo o ônus para a parte mais frágil, o preso condenado.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ)expediu a Recomendação nº 62, em 17 de março de 2020, dirigida aos Tribunais e magistrados para adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus Covid-19 no âmbito dossistemas de justiça penal e socioeducativo.

Do art. 5º da referida Recomendação se extraem medidas importantes, que certamente atendem à prevenção da infecção, sem suprimir direitos: a saída antecipada dos regimes fechado e semiaberto, nos termos das diretrizes fixadas pela Súmula Vinculante nº 56 do Supremo Tribunal Federal (STF); a prorrogação do prazo de retorno ou adiamento da saída temporária; a concessão de prisão domiciliar em relação a todas as pessoas presas em cumprimento de pena em regime aberto e semiaberto e colocação em prisão domiciliar de pessoa presa com diagnóstico suspeito ou confirmado de Covid-19.

No entanto, por se tratar derecomendação, que não tem efeito vinculante, ainda há muita relutância para sua aplicação, conforme se infere das informações e relatórios (maio/2020) de monitoramento da Recomendação nº 62/CNJ, em vigor deste março/2020 e mais recentemente prorrogada pela Recomendação nº 91/CNJ até 31.12.21, considerando a subsistência da crise sanitária e a eclosão de variantes virais mais contagiosas e potencialmente letais.

A Recomendação nº 62/2020, reforçada pela nº 91/2021, ambas do CNJ, se otimizadas na aplicação,trariam resultados mais satisfatórios para a prevenção da Covid-19 nos presídios, na medida em que reduziria substancialmente a superlotação carcerária, permitindo maior controle sanitário e dos níveis de contágio, garantindo, assim, o direito à saúde e à vida de milhares de pessoas presas.

Ressalte-se, com relação à saída temporária, aprimeiramedida recomendada é para prorrogação do prazo de retorno. No entanto, em alguns Estados, optou-se pela fórmula mais fácil, suspender a saída temporária do apenado, que já está privado da visita da família em função dos contingenciamentos sanitários decorrentes da Covid-19. Nestes tempos de pandemia, a medida consentânea com as normas constitucionais e legaisseria a saída temporária de 7(sete) dias, prorrogável até o término do período de restrição sanitária, até porque o preso em regime semiaberto, em vários Estados brasileiros, cumpre pena em regime domiciliar com monitoração eletrônica, quando necessária e adequada.

Por outro lado, é possível fazer testes para detecção daCovid-19, na saída e no retorno ao cárcere, como aponta relatório de monitoramento do CNJ: desde maio/2020 já foram realizados 253.931 testes em pessoas privadas de liberdade no Brasil.

Portanto, a preterição do direito à saída temporária, quando há outras medidas recomendadas e possíveis, configura intolerável desvio de execução, em duplo aspecto, pois impede um direito previsto em lei e favorece a elevação dos níveis de contágio – doença e morte provocado pela superlotação carcerária, quando podia ser reduzida com a concessão da saída e sua prorrogação.

A crise sanitária brasileira apresenta-se como uma das mais graves do mundo, o momento é de excepcionalidade e assim devem ser adotadas medidas igualmente diferenciadas da normalidade, notadamente em relação ao sistema penitenciário, para garantir os direitos das pessoas presas à saúde e à vida.Não é crível que para a sociedade livre o Estado estimule o isolamento e proíbaa aglomeração epor outro lado, dentro dos cárceres o Estado força a aglomeração mantendo pessoas presas em estabelecimentos prisionais superlotados em todo o país.

Portugal, no combate à pandemia, deu o bom exemplotambém neste campo, com a edição da Lei nº 9/2020, de 10 de abril de 2020, quando estabeleceu excepcionalmente, no âmbito da emergência de saúde pública ocasionada pela doença Covid-19, as seguintes medidasde flexibilização das penas: a) um perdão parcial de penas de prisão; b) um regime especial de indulto das penas; c) um regime extraordinário de licença de saída administrativa de reclusos condenados; d) aantecipação extraordinária da colocação em liberdade condicional.

Por fim, bom lembrar queem 2015, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, o Plenário do STF reconheceu o estado de coisas inconstitucional para o sistema penitenciário brasileiro a fim de assegurar a integridade física e moral dos custodiados. A situação de vulnerabilidade da população carcerária deve atrair do Estado brasileiro um dever de atenção especial, já que responsável pela sua custódia direta. Assim, as medidas para prevenção da Covid-19 devem priorizar/viabilizar a saída e não a retenção de pessoas no sistema prisional já superlotado, e um excelente começo seria uma menor resistência à aplicaçãoda Súmula Vinculante nº 56 do STF e das Recomendações nº 62/2020 e nº 91/2021 do CNJ. Forçoso concluir, que a Constituição Federal de 1988 ainda não conseguiu escalar os muros dos presídios brasileiros para se tornar efetiva e concretizar a igualdade material, fazendo valer para todos e todas o direito à saúde, à liberdade e à vida, eque segue incólume o estado de coisas inconstitucional.

REFERÊNCIAS

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