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A memória como prova no processo penal: mente que nem sente!

Ingryd Silvério dos Santos*

Muitas vezes, a prova testemunhal no processo penal está estritamente relacionada à memória da testemunha. A questão é: quão confiável pode ser as suas lembranças?

Você certamente esteve em uma farmácia ou mercado nos últimos dias e há grandes chances de ter permanecido alguns minutos com no mínimo duas pessoas: a que estava em sua frente e a que estava atrás de você. Você conseguiria descrever os detalhes dos seus rostos? Ou melhor, consegue se lembrar e identificar, sem sombra de dúvidas, o frentista que abasteceu o seu carro no posto de combustíveis da rodovia que trafegou em sua última viagem?

Em um crime, acreditem, muitas vezes o tempo que a testemunha ou a vítima passa com o criminoso não é superior aos exemplos que descrevi acima. E a este evento, devemos acrescentar vários sentimentos humanos: susto, medo, apreensão, tristeza, humilhação e etc.

No processo penal, o bem jurídico tutelado, para mim, é muito mais valioso que a vida, já que, de nada adianta viver se não possui LIBERDADE. Não é incomum que a defesa criminal se encontre “frente a frente” com uma testemunha (ou vítima) que narra fatos verdadeiramente mentirosos.

Ocorre que as provas intrinsicamente relacionadas à memória humana (vítimas, testemunhas e etc), vem se tornando um grande desafio para a área da psicologia e para o Poder Judiciário, havendo uma grande junção a respeito dos dois temas, tendo em vista a quantidade devastadora de erros judiciais que consideraram a memória humana como prova incontestável.

Curiosamente, o procedimento do Reconhecimento de Pessoas (art. 226, CPP) em que, obviamente, a vítima ou testemunha é colocada em posição de reconhecimento de seu próprio algoz, as taxas de erros judiciários são gravíssimas, pois, muitas vezes o atropelamento das regras procedimentais, aduz ao reconhecedor, um perigo nefasto ao processo penal democrático chamado: falsas memórias.

Muitos estudiosos e pesquisadores, atualmente, vem dedicando suas atividades para o estudo da “Psicologia do Testemunho”. Basicamente, todos os momentos antes do fato, durante e após o fato, podem macular a memória do reconhecedor, pois, a mente humana produz uma série de variáveis, modificando os fatos e incluindo fatos, preenchendo eventuais lacunas.

Isto é, mesmo que de boa-fé, uma pessoa pode reconhecer a outra como criminosa se assim a sua mente induzir/sugestionar.

E a partir do momento em que a mente preencheu uma memória lacunosa, acreditem, o desastre é certeiro. Pois, imaginemos uma vítima que não conseguiu guardar os traços do rosto de seu estuprador durante o ato e logo após (podendo ocorrer a delonga de meses entre o fato e o reconhecimento) é apresentado a ela uma pessoa com características semelhantes. Neste momento, as lacunas estão preenchidas e aquela pessoa acabou de ganhar um adjetivo nada bom: se tornou réu.

Claro, há uma série de variáveis relacionadas à postura policial que são, definitivamente, indispensáveis para que a acurácia criminosa seja o mais próximo do real/verdadeiro, pois, por exemplo, uma vítima de roubo que jamais esteve em tal posição, ao perceber a existência de uma arma de fogo próxima ao seu corpo, permanece de olhos abaixados, guardando em seu subconsciente alguns “flashes” sobre aquele momento, recordando-se de apenas algumas características. Logo, ao analisar fotografias de um álbum de suspeitos, por exemplo, as chances de reconhecer equivocadamente uma pessoa inocente, com base em uma ou outra característica semelhante é enorme, visto que o cérebro humano é programado para associar.

Destaque merece o fato de que a exposição à fortes emoções prejudica (e muito) à colheita de informações fidedignas pela memória humana.

Importante relembrarmos o caso Ronald Cotton, que, infelizmente, é ícone de uma tragédia jurídica que empregou 10 anos de prisão em sua vida, mesmo sendo absolutamente inocente. Em resumo, Jennifer Thompson-Cannino foi vítima de estupro de 1984, tendo ela reconhecido Ronald como seu algoz. Inconformado, Ronald tentou anular a sua condenação várias vezes, obtendo sucesso apenas 1995, quando amostras de DNA comprovaram que em verdade, o estuprador seria Bobby Poole. Para saber mais, acesse: https://innocenceproject.org/cases/ronald-cotton/

Outro ponto à reflexão é relacionado ao preconceito implícito ou aos estereótipos. Não é incomum que pessoas negras sejam equivocadamente reconhecidas como autoras de delitos que nunca cometeram. Em matéria publicada pelo Fantástico[1], um levantamento realizado pelo Condege concluiu que cerca de 83% dos presos injustamente por reconhecimento fotográfico no Brasil são negros. Lamento dizer que não se trata de uma coincidência.

Neste ponto, o Professor e Juiz de Direito Dr. George Marmelstein, ao escrever o livro “Testemunhando a Injustiça”, ensinou que: “Essa diferença de tratamento está relacionada com à associação automática entre a raça negra e a criminalidade. Em um estudo intitulado “Looking like a criminal: Stereotypi-cal black facial features promote face source memory error” (“Parecendo um criminoso: características faciais negras estereotipadas promovem erro de memória de fonte”), Heather Kleider e colegas testaram a influência do estereótipo facial no processo de reconhecimento de criminosos. A conclusão foi de que as pessoas associam mais facilmente os rostos esteretipicamente negros a uma categoria criminosa (traficante de drogas) do que a categorias neutras (artista ou professor). Por outro lado, rostos menos estereotipados são associados mais rapidamente a categorias neutras do que a categorias criminosas. O fenômeno ocorre independentemente de gênero ou da raça, ou seja, até mesmo pessoas brancas, desde que possuam feições mais estereotipicamente negras, tendem a ser associados automaticamente à criminalidade em comparação com pessoas que não tenham as mesmas características. Segundo as pesquisadoras, essas associações tendenciosas entre criminalidade e tipo de rosto estereotipado podem levar a muitos erros judiciais, sobretudo praticados contra réus negros. (KLEIDER, CAVRAK & KNUYCKY, 2012).”

A criminologia trata o tema como “etiquetamento social” e uma espécie de “bestificação” relacionada às pessoas negras e/ou estereotipadas, o que, lamentavelmente, é palco para injustiça irreparável, especialmente quando a prova da acusação é estruturalmente relacionada a prova testemunhal.

Outro ponto de destaque se relaciona aos crimes sexuais, estes que a prova da acusação não é estruturalmente relacionada à prova testemunhal, mas sim, resume-se exclusivamente a ela. Não é incomum que o judiciário brasileiro, equivocadíssimo, sabatine a palavra da vítima como elemento “de ouro”, que, muitas vezes associadas apenas ao boletim de ocorrência ou à testemunhas do “ouvi dizer”, condenando um indivíduo à penas altíssimas.

Neste sentido, duas vertentes merecem destaque: FALSAS MEMÓRIAS e FALSAS ACUSAÇÕES.

Em relação às falsas memórias, não posso deixar de mencionar o grande Dr. Aury Lopes Junior, que assim ensina: “As falsas memórias se diferenciam da mentira, essencialmente, porque, nas primeiras, o agente crê honestamente no que está relatando, pois a sugestão é externa (ou interna, mas inconsciente), chegando a sofrer com isso. Já a mentira é um ato consciente, em que a pessoa tem noção 499 do seu espaço de criação e manipulação.”[2]

Brevemente, em completo enlace com as falsas memórias, as falsas acusações relacionadas à crimes sexuais vêm causando verdadeiro assombro aos réus/denunciados, pois, infelizmente, não é incomum o encontro da VINGANÇA se misturando com os mecanismos de proteção às vítimas, que conferem a elas proteção ímpar. E não por menos, vítimas reais devem e merecem ser protegidas.

Tem-se que o livro coordenado pelo médico e advogado Dr. Jorge Paulete Vanrell chamado “Sexologia Forense”[3] aborda de forma extremamente pontual e técnica que, infelizmente, as falsas acusações em crimes de estupro são enormes e comportam dados assustadores:

“Capítulo 9 – As falsas denúncias de abuso sexual

Um alerta importante

Um balanço atuarial realizado nas 13 Varas de Família de Rio de Janeiro, Capital, em 2015, DEMONSTRA QUE 80% DAS DENÚNCIAS DE ABUSO SEXUAL REGISTRADAS SÃO FALSAS, segundo afirma a psicóloga do TIRJ Glícia Barbosa de Mattos Brazil.

De maneira semelhante, na Vara da Infância e Adolescência de São Gonçalo/Rj, no mesmo período, a realidade não é muito diferente: cerca de 50% dos registros de abuso sexual são forjados, conforme relata o psicólogo Lindomar Daròs.

Estes números estarrecedores devem estabelecer um alerta, um verdadeiro chamado de atenção, quando o caso é apresentado para ser submetido à perícia médico-legal, ato médico do qual tanto poderá depender a condenação de um inocente – que é o mais frequente – ou a liberdade de um culpado.

Com efeito, a atenção que se deve prestar nestes exames, por parte do médico-legista, deve estremar-se. E isto vale tanto para a anamnese, quanto para o exame físico.

É fácil compreender que, muito embora os percentuais citados sejam puntiformes e correspondam apenas a um dos Estados da União, o fenômeno não é apenas local, mas nacional e universal.”

De um lado, a vítima merece uma resposta estatal, de outro, quando o Estado é omisso, ou, negligente com sua tarefa de punir, nasce outra vítima: a vítima do sistema!

Pensar na prova testemunhal de forma crítica e madura, sem qualquer viés ideológico ou sentimental, é um poder/dever de todo operador do direito em esfera criminal, frente às consequências sociais que este tipo de condenação pode acarretar.

*Ingryd Silvério dos Santos é graduada em Direito, pós-graduada em Ciências Criminais, Tribunal do Júri e Execução Criminal. @adv.ingrydsilverio – ingrydsilverio@gmail.com


[1] https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2021/02/21/exclusivo-83percent-dos-presos-injustamente-por-reconhecimento-fotografico-no-brasil-sao-negros.ghtml

[2] Direito processual penal / Aury Lopes Jr. – 13. ed. – São Paulo : Saraiva, 2016. 1. Processo penal – Brasil I. Título.

[3] Pág. 538 – Sexologia Forese / Jorge Paulete Vanrell. – 3 ed. – Leme, SP: JH Mizuno, 2020.

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