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Breves considerações sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal que considerou inconstitucional a legítima defesa da honra

Introdução

No dia 1º de agosto de 2023, o Supremo Tribunal Federal, por intermédio de uma ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 779), firmou o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra seria inconstitucional, em razão da violação dos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88) e da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, CF/88).[1]

A discussão sobre a admissão da legítima defesa da honra foi levantada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), o qual propôs uma ADPF perante o Supremo visando a decretação da inconstitucionalidade da legítima defesa da honra.[2] Além da violação dos supracitados princípios, argumentou-se também que os dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal sobre a matéria deveriam ser interpretados de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa.[3] Sendo assim, a defesa, a acusação, a autoridade policial e o juízo não poderiam utilizar, direta ou indiretamente, qualquer argumento que induzisse à tese nas esferas pré-processual ou processual penal nem durante o julgamento do Tribunal do Júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.[4] Inclusive, foi acrescentado que caso a defesa utilizasse a tese com a intenção de gerar nulidade, os advogados não poderiam pedir novo julgamento do júri.[5]

Por fim, entendeu-se que não ofenderia a soberania dos vereditos caso houvesse a anulação da absolvição que fora baseada na tese da legítima defesa da honra.[6]

Nesta contribuição pretende-se realizar breves considerações acerca de uma decisão do Supremo Tribunal Federal que considerou a legítima defesa da honra inconstitucional. Mas afinal de contas, a legítima defesa da honra seria inconstitucional mesmo? O Supremo refuta realmente, no sentido técnico, a defesa do bem jurídico honra?

Desenvolvimento

A legítima defesa é um instituto jurídico previsto no artigo 25 do Código Penal, que preconiza o seguinte:

Art. 25, CP: Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

A legítima defesa tem natureza jurídica de causa excludente de ilicitude, de modo que o agente que se vale desse instituto pratica um fato típico, porém lícito. Ademais, depreende-se do dispositivo que qualquer pessoa poderia agir em legítima defesa, desde que use moderadamente dos meios necessários (proporcionalidade em sentido estrito). Em relação a essa modalidade de proporcionalidade, o agente deve levar em consideração os meios mínimos necessários. Tomemos como exemplo o caso da vítima que é agredida e tem à sua disposição uma pistola e uma metralhadora. Com a simples pistola, facilmente seria possível repelir a injusta agressão, ou seja, a escolha do meio necessário teria que ser mínimo, e não apenas efetivo. Outro exemplo envolvendo a proporcionalidade em sentido estrito seria aquele em relação à própria moderação, quando o agente repele a injusta agressão, mas não podendo ir além do necessário, como é o caso daquele que efetua mais disparos do que o necessário.

Outro elemento importante que pode ser extraído do dispositivo é a atualidade e a iminência. Se a agressão não for atual ou pelo menos iminente, o agente não estará acobertado pela legítima defesa.

Outra questão relevante diz respeito à exigência ou não da proporcionalidade em sentido amplo na legítima defesa. Vimos que a proporcionalidade em sentido estrito é exigida, porém a em sentido amplo não o é. Essa proporcionalidade em sentido amplo diz respeito à ponderação ou não entre bens jurídicos, ou seja, se é possível haver hierarquização de bens jurídicos na legítima defesa. A jurisprudência e a boa doutrina alemãs afirmam que não há que se falar nessa modalidade de proporcionalidade, é dizer, havendo bens jurídicos individuais tutelados pelo ordenamento jurídico, aquele que fosse lesionado em razão de uma injusta agressão poderia lesionar outro bem jurídico.[7] Exemplo: se o agente tenta furtar um carro de alguém (bem jurídico patrimônio), em últimas consequências, ele poderia matar o furtador (bem jurídico vida). E isso se dá por uma razão simples: estamos diante de uma injusta agressão, o que é diferente do estado de necessidade justificante, no qual os bens jurídicos em jogo são legítimos, daí poder se exigir aqui a proporcionalidade em sentido amplo. Assim, conforme preconiza Aníbal Bruno, na legítima defesa há dois bens jurídicos em colisão, um dos quais tem de perecer. Para o Direito importa que apenas o mais valioso sobreviva, e o mais valioso, do ponto de vista da Justiça, é do agredido, sendo a reação deste, portanto, concorde com o Direito.[8]

É oportuno que seja realizada a distinção da palavra honra que o Supremo Tribunal Federal utilizou para declarar a legítima defesa da honra inconstitucional. A palavra honra usada pelo Supremo é no sentido vulgar do termo, diferentemente da palavra honra encarada como bem jurídico a ser tutelado pelo art. 140 do CP. Ora, o que o Supremo visa proibir não é a tutela propriamente do bem jurídico honra, mas, sim, a organização ético-jurídica da família e a ordem jurídica do matrimônio[9], vedado também no Direito alemão.[10] Inclusive, essa proibição é reforçada com a revogação do crime de adultério em 2005 no Brasil, dantes previsto em capítulo que previa crimes contra o casamento. É diferente o caso de uma pessoa injuriar uma outra, chamando-a repetidas vezes e de forma ininterrupta de corno. Isso porque, há um injusta agressão encapsulada como crime, previsto no artigo 140 do Código Penal, e cujo bem jurídico tutelado é a honra. O exemplo, neste caso, inclusive, é proposital no que se refere à injúria de forma ininterrupta, até porque se não o fosse, a atualidade da agressão estaria cessada. Em razão da natureza da agressão verbal ser bastante fácil de ser repelida, dificilmente a morte do agressor seria legitimável, em que pese possível. Imagine excepcionalmente o caso do agente que é cadeirante e que possua uma arma de fogo. Dentro da sua arma há apenas um projétil, de modo que a única forma de cessar a agressão é atirando no agressor verbal e assim o faz. O disparo atinge a veia femoral do agressor e este vem a falecer em seguida. Temos aqui, portanto, o bem jurídico vida de um lado e o bem jurídico honra de outro. Neste caso, o autor entende que, por não haver proporcionalidade em sentido amplo, a morte do agressor verbal não poderia ser imputada ao agente. Aníbal Bruno inclusive defende a defesa da honra neste sentido, afirmando que como os demais bens jurídicos, o da honra também é defendida pelo instituto da legítima defesa.[11] Corroborando com o que já fora aludido, Aníbal Bruno preconiza que a legítima defesa é proteção, e não vingança, razão pela qual cessando a injusta agressão cessará também a autorização para a atuação em legítima defesa.[12]

A fundamentação para tanto encontra-se justamente nos fundamentos da legítima defesa. Na Alemanha, por exemplo, onde o Brasil é bastante influenciado pela sua literatura, é posição majoritária que a legítima defesa é fundamentada dualisticamente, ou seja, baseando-se na proteção de bens jurídicos e na proteção da ordem jurídica – dois pilares, portanto.[13] Ou seja: além de a legítima defesa ser fundada na proteção de bens jurídicos – vida, honra, liberdade, patrimônio, propriedade etc. -, também o seria na afirmação da ordem jurídica. E no Brasil não é muito diferente.[14] Se o fundamento de existência da legítima defesa é primordialmente a proteção de bens jurídicos individuais, então não se poderia negar ou proibir a legítima defesa da honra.

Além do argumento do “fundamento da legítima defesa”, há um outro, de natureza hermenêutica: o próprio artigo 25 do Código Penal sequer elenca os bens jurídicos a serem tutelados. Então a tese de que a legítima defesa não tutelaria o bem jurídico honra por não estar previsto no mencionado artigo cairia por terra, afinal de contas o próprio legislador não se deu ao trabalho de excepcionar essa permissão. Vale aqui o seguinte brocardo: “Ubi lex non distinguir nec nos distinguere debemus” – no caso da falta de diferenciação pela lei, não pode querer o juiz implementar nenhum critério distintivo.[15] O legislador, portanto, apenas afirmou que pode atuar em legítima defesa aquele que sofre uma injusta agressão, sem distinguir se o bem jurídico é a honra, a vida, o patrimônio, a propriedade etc.

Nesse contexto, a argumentação de que o bem jurídico honra não poderia ser tutelado em razão da sua insignificância não pode prosperar. Isso porque, o próprio ordenamento jurídico prevê como bem jurídico a ser tutelado a honra. Ora, para que a legítima defesa do bem jurídico honra fosse encarada como ilegítima, primeiro dever-se-ia, no mínimo, abolir o crime de injúria (crime contra a honra) para, depois, argumentar a ilegitimidade da legítima defesa do bem jurídico honra.

Considerações finais

Do exposto, conclui-se que a legítima defesa do bem jurídico honra não foi declarada inconstitucional pelo Supremo. A legítima defesa da honra que o Supremo se referiu, pelo menos em seu julgado, foi em relação à organização ético-jurídica da família e da ordem jurídica do matrimônio. O reforço argumentativo para tanto encontra-se justamente na abolição do crime de adultério em 2005.

O grande imbróglio que surgiu foi justamente em razão da sua aplicação no âmbito do Tribunal do Júri, isso porque a decisão dos jurados seria soberana, não se devendo trazer à baila os fundamentos que os levaram a decidir desta ou daquela forma.

O autor acredita que a tese da legítima defesa da honra continua, portanto, sendo aplicada, inclusive no âmbito do Tribunal do Júri, e a fundamentação para tanto está justamente nos fundamentos da legítima defesa, que é tutelar primordialmente os bens jurídicos individuais.


[1] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6081690. Último acesso em 05 de agosto de 2023.

[2] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6081690. Último acesso em 06 de agosto de 2023.

[3] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6081690. Último acesso em 06 de agosto de 2023.

[4] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6081690. Último acesso em 06 de agosto de 2023.

[5] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6081690. Último acesso em 05 de agosto de 2023.

[6] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6081690. Último acesso em 05 de agosto de 2023.

[7] Veja-se a respeito: KRAMER, Proportionalitätserfordernis bei der Notwehr – Eine rechtsphilosophische Frage, Hamburg: Verlag Dr. Kovač, 2023, p. 220 ss.

[8] BRUNO, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 374.

[9] BONIN/BAADE/MACHIAVELLI, Ponto de Vista Jurídico 2020, p. 94.

[10] STEMLER, ZJS 2010, p. 348.

[11] BRUNO, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 379.

[12] BRUNO, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 379.

[13] Cf. decisão do Tribunal Constitucional: BGHSt 48, p. 212 e a doutrina: REINBACHER, ZIS 2019, 511; KÜHL, JURA 1990, p. 247; HERZOG, JZ 2016, p. 194 ss.

[14] Cf. BRUNO, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 373 s; PRADO, Curso de Direito Penal Brasileiro, Volume 1, Parte Geral, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 364 s; GRECO, Curso de Direito Penal, Parte Geral, Rio de Janeiro: Impetus, 2011, p. 334.

[15] Veja essa tese argumentativa em outros casos em: KRAMER, Proportionalitätserfordernis bei der Notwehr – Eine rechtsphilosophische Frage, Hamburg: Verlag Dr. Kovač, 2023, p. 197 s; HENNIGER, Europäisches Privatrecht und Methode, p. 121 e nota de rodapé 758.

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