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Os desafios da ressocialização e da reincidência criminal frente à realidade dos presídios cearenses

A pena privativa de liberdade é uma das mais comuns a serem aplicadas no Brasil, apesar de existirem inúmeros outros instrumentos jurídico-punitivos menos lesivos à dignidade da pessoa humana, tais como pena de multa, perda de bens, limitação de fins de semana, prestação de serviços à comunidade, interdição de direitos, tornozeleira eletrônica e o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), este advindo do pacote anticrime – a Lei 13.964/2019. O cerceamento da liberdade do indivíduo deveria ser a última alternativa a ser aplicada, uma vez que a mesma não apresenta eficácia plena na ressocialização, isto é, a pena vem somente e unicamente para o manter longe e isolado do convívio social. Além disso, deve-se lembrar que após o cumprimento da pena, o preso ganhará a liberdade, uma vez que no Brasil não existe pena de prisão perpétua, e, com isso, para a sociedade é muito mais vantajoso que este volte ao convívio social ressocializado.

A falta de uma política de ressocialização eficaz somada a uma péssima estrutura carcerária com ambientes degradantes, celas superlotadas, falta de higiene, além da má distribuição dos presos, contrariando a Lei nº 7.210, de 11 de Julho de 1984, onde essa em seu art. 41 trata dos direitos dos presos, que incluem alimentação e vestuário suficiente, trabalho, assistência material, de saúde e outros, e a Lei nº 13.167, de 6 de Outubro de 2015, que trata da distribuição dos presos por condenação em celas, pois é muito comum nos presídios brasileiros, se encontrar nas celas desde um preso provisório por crime de roubo a um grande assaltante de bancos já condenado, grandes e pequenos delitos reunidos no mesmo espaço, 22h por dia, tornando essa uma verdadeira “faculdade do crime”, onde alguns ampliam suas atuações criminosas, ou até mesmo são obrigados a se inserir numa facção para ter proteção no presídio, podendo inclusive um inocente ser preso injustamente, e ser colocado na mesma cela que os condenados por crimes horrendos.

A ressocialização do preso deveria começar logo no início da execução da sua pena, pois o Estado deveria analisar cada um em sua individualidade (o princípio da individualização da pena assim determina) e os encaminhar a desenvolver trabalhos nas unidades prisionais, ou fora sob sua tutela, de acordo com suas habilidades, e ainda os estimular e os capacitar para aprimorá-las ainda mais, para que assim, além do mesmo estar ajudando de forma positiva o sistema penitenciário, irá o preparar para que no dia que esse ganhar a liberdade, ser capaz de usar todo o conhecimento adquirido dentro da prisão de forma positiva, e assim desenvolver atividades dentro do escopo legal, e não criminal.

2 – O SISTEMA PRISIONAL CEARENSE E SUAS MAZELAS

A criação histórica das prisões advém do famoso contrato social, que precozina a necessidade de criar uma estrutura Estatal capaz de afastar os homens infratores da convivência dos demais homens, mantendo esses seguros, pois sabiam que os seres considerados maus por seus atos estavam sob domínio do Estado nas chamadas prisões (CANTO, 2000).

Não obstante, vale salientar que no passado, sem a existência de tratados e de ordenamentos sobre os direitos humanos, as instituições de punição eram completamente rígidas e altamente cruéis, assim, não havia respeito à dignidade da pessoa humana. Além de serem ambientes escuros, com condições precárias, nessas prisões os castigos físicos, os trabalhos forçados e a superlotação fazia parte do dia a dia, que nem de longe eram considerados humanos. Portanto, tem-se que a ressocialização não fazia parte desse cotidiano.

No Brasil, essa realidade difere, podendo dizer que é só uma continuidade do passado, haja vista que na realidade dos presídios brasileiros, em especial dos presídios cearenses, objeto de estudo desse trabalho, é notória a superlotação de presos, conforme dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública do ano de 2023, o total de presos no ano anterior era de 37.255, sendo que o total de vagas do sistema penitenciário cearense era de cerca de 24.767 vagas, ou seja, 12.488 presos a mais do que o sistema prisional poderia comportar, trazendo uma superlotação nos ambientes penais, levando essas pessoas as condições mais subumanas possíveis.

Segundo Capez (2002, p. 319) a pena de prisão é:

Sanção penal de caráter aflitivo, imposta pelo Estado, em execução de uma sentença, ao culpado pela prática de uma infração penal, consistente na restrição ou privação de um bem jurídico cuja finalidade é aplicar a retribuição punitiva ao delinquente, promover a sua readaptação social e prevenir novas transgressões pela intimidação dirigida à coletividade.

A partir desse pensamento pode-se indagar quanto a forma de sanção penal de caráter aflitivo. Trazendo para a realidade prisional do Estado, onde existe uma superlotação nas celas prisionais, em que no Último Balanço do anuário Brasileiro de Segurança Pública, onde o Estado do Ceará apresentou uma superlotação de 12.488 presos, onde existem 37.255 apenados recolhidos em 24.767 vagas. Nesse sentido, é bastante questionável a realidade vivida pelos internos, no que diz respeito a superlotação, em ambientes que são feitos para comportar apenas 6 presos, é comum haver ao menos 15, onde esses revezam entre si os locais de dormir, comumente uns ficam em pé enquanto outros deitam ou ficam com as pernas entrelaçadas entre si, fazendo um esforço surreal para poder repousar.

Segundo Coelho (2003, p.1):

A nossa realidade é arcaica, os estabelecimentos prisionais, na sua grande maioria, representam para os reclusos um verdadeiro inferno em vida, onde o preso se amontoa a outros em celas (seria melhor dizer em jaulas) sujas, úmidas, anti-higiênicas e superlotadas, de tal forma que, em não raros exemplos, o preso deve dormir sentado, enquanto outros revezam em pé.

Para lidar com a superlotação e seus efeitos negativos, as penas alternativas têm sido propostas e adotadas em muitos sistemas jurídicos. As penas alternativas são medidas punitivas que buscam evitar o encarceramento de determinadas categorias de infratores, oferecendo opções mais humanitárias e voltadas para a reintegração.

Algumas das penas alternativas incluem:

• Trabalho comunitário: Substituindo a pena de prisão, nessa pena, os infratores podem ser condenados a prestar serviço comunitário a associações comunitárias, ONG’s ou instituições públicas. Nessa modalidade, além de ser menos danosa que a pena privativa de liberdade, o infrator poderá contribuir de forma positiva com a sociedade, reparando o dano causado.

• Penas pecuniárias: Algumas sentenças podem envolver o pagamento de multas ou indenizações às vítimas, em vez de cumprir pena de prisão, sendo essa uma pena financeira.

• Monitoramento eletrônico: Alguns infratores, no ato da condenação podem cumprir suas penas em regime semiaberto e usar tornozeleira eletrônica para seu monitoramento, o equipamento que fica preso no tornozelo emite sinal de GPS cuja informação é acompanhada pela Secretaria da Administração Penitenciária e Ressocialização, isso permite uma maior liberdade de movimento, mas ainda assim impõe restrições à circulação.

A implementação de penas alternativas seria uma forma eficaz de desafogar a superlotação dos presídios, pois muitos dos que lá se encontram sequer foram julgados. Muitos condenados, por crimes de pequeno potencial ofensivo, são submetidos ao sistema prisional, para a correta aplicação da pena de prisão e, assim, para as penas alternativas deve-se leva em conta a gravidade do crime cometido e a os riscos para a sociedade.

Também é essencial garantir que as penas alternativas sejam adequadamente supervisionadas e que existam programas de ressocialização eficazes para aqueles que cumprem penas alternativas, a fim de reduzir as taxas de reincidência. Além disso, é crucial combater a superlotação nos presídios por meio de medidas de reforma do sistema penal e investimento em políticas mais abrangentes de justiça criminal.

3 – O DIREITO AO TRABALHO COMO MECANISMO DE RESSOCIALIZAÇÃO

O direito ao trabalho é algo fundamental na sociedade moderna, sem distinção entre classes sociais, raça ou etnia. A Constituição Federal de 1988 coloca como princípio fundamental no Artigo 1º, Inciso IV – Os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, mostrando, assim, que o trabalho é uma das premissas fundamentais da nação, seja para cidadão preso, seja livre.

No Estado do Ceará, segundo dados do sistema penitenciário, no mês de abril de 2022, dos 22.774 mil presos, apenas 4.089 eram beneficiados com trabalho e outros 72 com capacitação profissional. Já no fim do ano de 2022, em dezembro, dos 21.087 mil presos, apenas 4.302 estavam desenvolvendo trabalhos e outros 3.993 passavam por capacitação profissional. Já no ano de 2023, no mês de abril, conforme dados da SAP, dos 21.630 mil presos, apenas 4.831 estavam a desempenhar trabalhos e outros 391 passavam por capacitação profissional, ou seja, apenas cerca de 24% dos presos estavam passando por processos de ressocialização nas penitenciárias. Dessa forma, outros 76% estavam apenas trancados em suas celas.

Contudo, um dos pontos a se destacar é quanto ao preconceito nutrido por boa parte da sociedade contra pessoas advindas do sistema prisional, frases do tipo “Bandido bom, é bandido morto” fazem parte do cotidiano brasileiro, entretanto, por que não falar que são pessoas dignas de ressocialização e de direitos, respeitando assim a dignidade da pessoa humana.

O direito ao trabalho, como garantia legal, é parte integrante desse processo de ressocialização. Isso envolve a criação de condições e de programas dentro do sistema prisional que visam proporcionar aos detentos a oportunidade de adquirir habilidades profissionais, obter emprego ou empreender após cumprir suas penas. Alguns dos benefícios que essa abordagem pode trazer incluem:

• Redução da reincidência: quando os egressos do sistema prisional tem acesso a empregos formais, eles são menos propensos a retornar à criminalidade, pois muitos entram no mundo delituoso devido à falta de emprego e a necessidade de prover o básico de sustento a suas famílias, sendo assim o trabalho formal para ex-detentos são essenciais para evitar a reincidência.

• Desenvolvimento de habilidades: oferecer treinamento e educação técnica dentro dos presídios permite que os detentos adquiram habilidades profissionais e educacionais valiosas, e essa qualificação aumentam suas chances de serem empregados após o cumprimento da pena.

• Integração social: o trabalho proporciona aos detentos e aos egressos a oportunidade de interagir a ambientes e relações pessoais saudáveis, além de ajudar a romper o ciclo de isolamento e de estigmatização que muitos ex-presidiários enfrentam ao sair da prisão.

• Empoderamento econômico: o trabalho remunerado permite que os egressos sustentem a si próprios e as suas famílias de forma legal e digna, isso reduz a probabilidade de recorrerem a atividades ilegais na busca por sobrevivência.

• Reparação à sociedade: A ressocialização por meio do trabalho pode ser vista como uma forma dos egressos do sistema penitenciário retribuírem à sociedade, contribuindo de maneira positiva e produtiva para a mesma.

É importante ressaltar que a implementação bem-sucedida do direito ao trabalho como mecanismo de ressocialização requer uma abordagem multidimensional. Isso incluí o envolvimento de instituições governamentais, dos setores privados, das organizações sem fins lucrativos e da própria comunidade. Além disso, programas de acompanhamento e de apoio após a liberação dos detentos são cruciais para garantir sua reintegração bem-sucedida e a continuidade do emprego.

Entretanto, é essencial também abordar possíveis obstáculos, como preconceitos e estigmas em relação a ex-presidiários no mercado de trabalho, falta de oportunidades de emprego adequadas e barreiras legais que podem impedir ou dificultar a contratação de pessoas com antecedentes criminais.

No geral, o direito ao trabalho como mecanismo de ressocialização é uma abordagem humanitária e eficaz que pode beneficiar tanto os indivíduos em readaptação quanto a sociedade como um todo. Ao fornecer oportunidades significativas para os ex-detentos, estamos dando-lhes a chance de mudar suas vidas e se tornarem membros produtivos e positivos da comunidade em que vivem.

4 – CONCLUSÃO

O estudo sobre o sistema carcerário e a reintegração social do preso desde o início do cumprimento da pena, em especial no Estado do Ceará, é de extremo valor social, acadêmico e jurídico, uma vez que estudar essa problemática, a fim de propor soluções para uma melhoria significativa no processo de retorno do apenado para a sociedade, trazendo assim a verdadeira função ressocializadora da pena, e não apenas punitiva.

Os dados demonstram a falência das políticas de ressocialização e levanta um debate quanto à ineficácia das penitenciárias como locais de correção e de preparo para o retorno social. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em sua obra Modernidade Líquida (1999), desenvolveu o conceito de Instituições Zumbi, segundo o qual o Estado perdeu sua função social, mas manteve sua forma. Nesse viés, o sistema carcerário se enquadra nessa teoria das instituições mortas-vivas, pois perdeu sua função de ressocialização, mas manteve sua forma restritiva e punitiva.

A Lei 7.210Lei de Execução Penal (1984, np) em seu art. 10 deixa claro que a “A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade”. A partir dessa legislação pode-se frisar que é papel fundamental do Estado a prevenção do crime e a orientação para quando o mesmo retornar para a sociedade.

Quando se visualiza a realidade prisional do Estado do Ceará, entende-se que a função delegada a esse com o intuito de melhorar a condição social do apenado, preparando o mesmo para reingressar ao convívio social está falhando, pois, sem ofertar as condições mínimas necessárias para que exista um resgate desses do mundo delituoso, devolve-se o mesmo ainda pior para o mundo fora dos muros.

É o que demonstra Bitencourt (2011, p.91):

Enfim, a tentativa de humanizar a pena, assim como o propósito de converter o sistema penitenciário em instrumento reabilitador sempre encontrou duas grandes dificuldades: de um lado, o cidadão comum mantém uma atitude vingativa e punitiva a respeito da pena privativa de liberdade, e, de outro lado, as autoridades públicas, por pragmatismo e oportunismo (geralmente com intenções demagógicas e eleitoreiras), não se atrevem a contradizer esse sentimento vingativo.

Dessa forma, é necessário que existam politicas que visem à capacitação dos apenados, onde ao invés de estarem 22 horas por dia dentro de celas superlotadas e sem instruções para ressocialização, estarão sendo preparados para o ingresso no mercado de trabalho legal, além de promover entre os empregadores uma política de inventivo à contratação dos egressos, diminuindo assim o retorno desses a criminalidade e consequentemente diminuindo os dados da reincidência prisional.

Considerando o exposto, pode-se notar que o processo de ressocialização é uma via de mão dupla, depende da boa vontade do Estado em fornecer as ferramentas necessárias para a mesma, além de buscar alternativas para evitar as superlotações e investir em políticas de engajamento desses ao mercado de trabalho legal, e ainda buscar meios de conscientizar a sociedade a aceitação dos egressos do sistema penitenciário no convívio social, mostrando que são seres dignos de uma segunda chance, e que os mesmos já pagaram sua dívida com a justiça e estão prontos para uma nova vida digna e longe das amarras da criminalidade.

*Victor Campos Luna é acadêmico em Direito e membro da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas (Abracrim)

REFERÊNCIAS

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