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Quem deu férias ao processo penal?

Marcelo Bareato

O sistema processual brasileiro foi concebido sobre muitos estudos, vários debates e outras tantas cópias de sistemas semelhantes ao nosso.

Notadamente, no campo do direito criminal, fomos buscar o que temos hoje, em sistemas como o alemão, o italiano e alicerçamos nossos conhecimentos em escolas clássicas para justificar o atual Estado Democrático de Direito, pautado na dignidade da pessoa humana, artigo 1.º, inciso III, da Constituição Federal.

Dito isso, toda e qualquer norma ou decisão que destoe dos princípios e preceitos constitucionais são, em sua totalidade, nulos e, por isso, devem ser revistos.

Não é à toa que a dignidade foi eleita como o maior de todos os princípios e, para que ela possa ser respeitada, a legalidade, a anterioridade e a reserva legal, compõem o que se conhece por devido processo legal. Este por sua vez, só estará presente quando conjugado com o contraditório, a ampla defesa, o juiz natural, a identidade física do juiz, a não culpabilidade e a paridade de armas.

Talvez nesse momento, você, meu Caro Leitor, já esteja se questionando sobre ser, este, um modelo ultrapassado, aduzindo que talvez ele dê muitas garantias a quem cometeu crimes e, até por isso, deveria ser revisto, fazendo com que os malfeitores pagassem pelos erros que cometeram.

Ocorre que a premissa de “pagar pelos erros que cometeram” envolve, obrigatoriamente, propiciar ao acusado que aprenda conceitos e valores que não faziam parte do seu dia a dia. Da mesma forma, a premissa anterior só se concretizaria na medida em que todos os que estão presos, lá estivessem após passar por um processo de investigação sério e desprovido de corrupção, o que não é, nem mesmo de longe, o modelo brasileiro.

Cabe aqui a ressalva de que em todos os seguimentos existem profissionais dignos do salário que recebem e outros, nem tanto. Fato é que vivemos em um contexto onde mais 850 mil mandados de prisão já se encontram expedidos, mandados que, em sua maioria, envolvem pessoas as quais não foram submetidas a qualquer tipo de investigação. Isso ocorre porque a polícia, através de seus agentes, preferiu comunicar ao juízo encarregado de acompanhar o inquérito, que as pessoas “supostamente investigadas”, estavam em lugar incerto e não sabido, sem ao menos tentar localizar o indivíduo, simplesmente por puro comodismo ou não o fez por excesso de trabalho.

Seja lá como for, cabe a explicação do que acabamos de mencionar: ao colocar em uma investigação que o sujeito está em lugar incerto e não sabido, a autoridade policial valida a perspectiva de uma prisão preventiva, a qual será cadastrada junto ao CNJ – Conselho Nacional de Justiça, o qual distribui para todos os estados da federação, a prisão autorizada. Daí que se o procurado estiver em uma “blitz”, por exemplo, poderá ser capturado onde for encontrado. Da mesma forma, se esse sujeito procurar por qualquer órgão público, será preso de imediato.

De notar-se que, nas mais das vezes, não existe qualquer fator a autorizar a prisão, mas o sujeito será preso mesmo assim, privado de sua família e emprego (caso tenha), submetido a perdas irreparáveis para, ao final de um procedimento (a prisão preventiva tem duração mínima de 90 dias, tempo necessário para o processo criminal), ser declarado inocente e retornar para casa com todas as “obrigações” assumidas dentro do sistema. Sim, obrigações as quais se vinculou para não morrer, não ser violentado sexualmente e que, dentro ou fora da prisão, lhe obrigam a proteger a “família” a qual passou a pertencer durante o período da prisão.

Esses são apenas alguns apontamentos. Claro, poderíamos estabelecer centenas de outros, tornando nosso texto de hoje enfadonho, o que não é nosso objetivo.

Com isso, voltemos a ideia inicial, da qual o foco principal, está nos direitos e garantias fundamentais. Tais direitos e garantias, é preciso sempre frisar, não estão em nosso texto para proteger “bandidos”, mas para garantir que, se houver um processo, esse processo seja o mais honesto possível e dedicado a apurar os fatos para estabelecer uma punição justa e capaz de incutir no faltoso, conceitos e valores que ele ainda não possuía. De nada adianta um procedimento demorado, caro, sem a perspectiva de que esse sujeito possa retornar a sociedade como um cidadão, como esses que estamos, todos os dias, presenciando. Não há prestação jurisdicional na demora, da mesma forma que a justiça não pode ser realizada oito ou 10 anos após os fatos.

É exatamente por isso que possuímos esse arcabouço de obrigações a serem preenchidos pelas autoridades (policial e judiciária), afim de que os erros sejam minimizados e os procedimentos sejam o mais legítimo possível.

Ocorre que, esses fatores aos quais acabamos de descrever, só serão cobrados na medida em que nosso judiciário se sinta obrigado a prestar contas a sociedade, de todas as suas decisões, mostrando que todas elas foram efetivadas com estrita obediência as determinações legais.

Por outro lado, quando nós, cidadãos, não temos a mínima noção sobre as leis que estão em vigor, possibilitamos que os operadores do direito sintam uma segurança na instabilidade jurídica e provoquem um populismo com ambições outras, que nada mais se traduz, do que aspirações políticas e notoriedade.

Destarte, temos alguns exemplos escandalosos e, por que não dizer, escabrosos, quando nos deparamos com a notícia de que o “STF reabre a discussão sobre voto vencido na dosimetria da pena”, ou quando a CPI da COVID manda “retirar e silenciar o advogado que acompanhava o dono da HAVAN”, ou ainda, quando o “STJ reduz sucumbência dentro dos limites percentuais do CPC”.

O leitor mais atento, já percebeu que estamos falando de ingerência sobre áreas distintas, onde o que deveria importar é o cumprimento da lei, a qual, como já dissemos, não permite conceitos pessoais na sua interpretação, mas apenas verificar qual o limite de sua extensão.

Ao permitirmos estabeleça uma discussão sobre o in dubio pro reo, somos forçados a admitir que um princípio pertencente ao Direito Penal e Processual Penal, seja colocado em cheque, desestabilizando o conceito de devido processo legal; da mesma forma que quando permitimos que uma senadora grite aos quatro cantos que os advogados devem ser retirados da sala em que seus clientes estão, ou que o presidente de uma CPI determine a cassação da palavra do advogado e sua saída com força policial, deixando o cliente sozinho e à mercê de todo tipo de chacota, não estamos fazendo direito, mas colocando em risco todo o sistema jurídico e a perspectiva de defesa, seja lá de quem for; ao determinar que os honorários sejam estipulados por um tribunal e não pela própria OAB e seus diversos dispositivos, ou por livre negociação, entramos no campo ao qual um advogado emprega anos e anos buscando conhecimento, estruturando um escritório, pagando funcionários para poder estar atualizado e proporcionando uma defesa digna e remetemos esse profissional ao escarnio, ao não investimento e a defesas cada vez mais esdruxulas, favorecendo os desmandos do judiciário.

Sim, toda causa tem o seu efeito, meu Caro Leitor!

Nesse ponto, se buscamos uma sociedade mais justa, mais atenta aos erros e que traga segurança jurídica aos seus cidadãos, é inaceitável DAR FÉRIAS AO PROCESSO PENAL ou a qualquer outra lei posta. Pois, sem balizas para o sistema jurídico implantado no Brasil, viveremos à deriva e ao sabor da moral e dos bons costumes daqueles que, talvez, não tenham tanta moral ou costumes tão bons assim.

*Marcelo Bareato é doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.º 21 na Academia Goiana de Direito, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial e Execução Penal na PUC/GO, Advogado Criminalista, membro da Comissão Especial de Segurança Pública da OAB Nacional, Conselheiro Nacional da ABRACRIM, Presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, Presidente da Comissão Especial de Direito Penitenciário e Sistema Prisional da OAB/GO, entre outros (ver currículo lattes http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).

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