A delação premiada e a defesa técnica do advogado
Stênio Castiel Gualberto
O assunto do momento, a colaboração ou a delação premiada ainda se desenha como um grande desafio a ser enfrentado pela advocacia criminal. Em tempos em que o combate ao inimigo público da vez, a corrupção, invade os meios de comunicação e monopoliza as atenções da grande mídia o direito e principalmente a advocacia criminal é confrontada com novos duelos a serem travados.
Não restam dúvidas que a lei 12.850/15, a legislação que trata a respeito de crimes de organização criminosa é bastante lacunosa e deixa em aberto inúmeros aspectos a respeito da aplicabilidade do instituto da colaboração, principalmente no que tange aos procedimentos processuais posteriores à formalização do acordo.
É a partir da concretização do acordo que surgem os principais questionamentos a respeito do ajuste procedimental inerentes à aplicação da colaboração premiada e o devido processo legal, princípio fundamental de garantia de que ninguém será condenado sem a justa verificação da ocorrência ou não de conduta típica e ilícita praticada por um acusado culpável.
Inicialmente é necessário definir que dentro da teoria do processo penal o modelo tradicional de se estabelecer uma estrutura tríplice, inserindo a figura do Juiz dentro da relação jurídica-processual há muito está superada. O propósito da inércia do Estado-Juiz, do juiz natural, da imparcialidade do julgador dentre outros impedem que se estabeleça a figura do Magistrado como um elemento inserido dentro da correlação entre as partes que se estabelece quando da formação de um processo.
Superado o incitamento de posicionar os elementos dentro da lógica processual a partir de um modelo acusatório, fixa-se que a função das partes ao longo da existência do processo é formar a convicção do órgão do Estado, no caso o Magistrado a respeito da culpa (e não da inocência como é costumeiro nos dias atuais) de alguém acusado formalmente por um crime. Obviamente que sendo o Estado parte ativa do processo todo e qualquer conceito de imparcialidade do julgamento passaria longe. Ser parte do processo violaria obviamente o princípio basilar da imparcialidade do Juiz.
Não sendo o Estado-Juiz parte da relação processual obviamente não pode e não deve participar das tratativas a respeito dos acordos firmados entre acusação e defesa cabendo a si justamente o papel de garantidor dos direitos do acusado, papel este constitucionalmente delegado. Nesse sentido, não existe possibilidade de que o acordo firmado entre as partes ainda que sob os moldes descritos pela Lei 12.850/15 suplante a existência do processo e a observância da aplicação das regras descritos na legislação formal própria.
Existe dessa forma um falso entendimento de que o acordo firmado entre acusação e defesa por si só eliminaria a necessidade de um processo nos moldes do que prevê a legislação vigente. Traz-se para a esfera criminal um pensamento civilista, de acordo livre de vontades que conforme nos habituamos a repetir desde os bancos da academia “faz lei entre as partes”. Ocorre que quando se lida no campo penal o interesse público suplanta qualquer intenção das partes de resolver a seu modo as tratativas que as interessem devendo o Estado e sempre ele decidir quais as eventuais sanções ou perdões judiciais a serem concedidos, nos moldes da referida lei.
É de vital importância nesse sentindo lembrar que a garantia constitucional do devido processo legal é de natureza pública, o instrumento de salvaguarda coletivo de que não haverá aplicação de nenhuma espécie de pena ou condenação sem que o Estado seja o responsável por tal, justamente como medida de proteção à eventuais arbitrariedades que possam vir a ser aplicadas contra alguém acusado formalmente pela prática de algum delito.
Eliminar o processo sob a alegação de que as partes pactuaram o que entendem suficientes para os objetivos da persecução penal é ir contra todos os pilares que fundamentam a existência do processo como alicerce da democracia e das garantias mínimas de proteção da força do Estado contra os indivíduos.
E a partir de então tem-se um desafio para a advocacia criminal: como atuar enquanto defesa técnica em um processo penal que nasce a partir da colaboração de um cliente?
A resposta para tal questionamento nasce e se localiza justamente na função pública do advogado: garantir a aplicação das regras previamente estabelecidas, seja no tocante à eventual acordo firmado junto ao Ministério Público ou Delegado, seja na utilização das normas vigentes por parte do Juiz. É importante se compreender de que havendo colaboração ou delação nos moldes da já supracitada lei de organização criminosa não há possibilidade da eliminação do processo legal e dessa forma, não há também chance de submeter alguém a processo penal sem que se garanta defesa por profissional habilitado para tal.
Logicamente que em um processo com tais características não haveria sentido em promover defesa técnica que negasse ou contradissesse as afirmações prestadas pelo Réu no campo do acordo premiado. Mas da mesma forma, não é nem de longe aceitável que não se permita por exemplo que a defesa suscite eventual nulidade oriunda da Denúncia, se por acaso existir.
Os instrumentos de defesa são sempre imprescindíveis de acordo com a eventual necessidade de utilização quando do interesse da parte e imaginar qualquer modelo de aplicação de lei penal que elimine o processo como garantia de aplicação das regras estabelecidas é derrubar justamente a função de contenção do poder punitivo que exerce o direito penal e suas vertentes.
Obviamente que a figura da colaboração premiada é instituto que causa grandes celeumas e discussões a respeito de seu ajuste em relação ao modelo processual pátrio, mas o fato é que em havendo ação penal oriunda de acordo de colaboração, há que se garantir devido processo, defesa técnica e ampla, exatamente de acordo como os ditames constitucionais previstos e em vigência.