Direitos Individuais e Democracia
Atravessamos um período de nossa história político/jurídica que as condições epistêmicas de nossas perguntas estão inscritas no avesso dos conceitos que utilizamos para lhes dar resposta. Ou seja, toda pergunta jurídica, parece não se relacionar com as respostas proferidas. O determinismo mecanicista é o horizonte certo de uma forma de conhecimento que se perfaz de forma utilitária e funcional, eis que, pretende dominar em detrimento da compreensão do real com constantes inversões ideológicas[1].
O controle da massa se torna mais fácil e eficaz, de acordo com os interesses defendidos pelos detentores do exercício do poder[2]. Por isso, insistentes perguntas a frequentes críticas às repostas sobre a privação cautelar da liberdade e sua finalidade. A resposta científica seria: não importa a finalidade e, sim, porque é assim que deve ser.
Peca-se pelo erro de considerar como suficiente a ‘força de um poder bom’ para satisfazer as funções atribuídas ao direito. E, mesmo que se considere a existência de um poder bom, como se fosse simples reduzir a complexidade do direito em uma bondade, é necessário o estabelecimento de um complexo sistema de direitos e garantias, que tenha por finalidade, limitar, vincular, funcionalizar e, se for o caso, deslegitimar, a ponto de neutralizá-lo quando exercido de forma ilegal e arbitrária[3].
Ocorre que, com o advento de uma constituição que deve servir de premissa para toda legislação existente e, também, a por vir, identifica-se que há uma aparente tensão a ser equilibrada entre toda uma ordem de conhecimento legislativo científico utilizável e aplicável em âmbito social. Essencial um modelo de racionalidade, justiça e legitimidade da intervenção punitiva[4] com a necessidade de uma coordenação de várias garantias concorrentes e articuladas, formando uma circularidade, que deflagram uma conectividade recíproca, conferindo efetividade umas às outras de forma sucessiva[5].
Contudo, observamos que existe uma real divergência entre os dispositivos legislativos legais com o modelo constitucional. Daí surge uma nítida [in] efetividade constitucional, garantidora de direitos, colocando o modelo garantista como uma ideologia mística inalcançável[6]. No entanto, garantismo designa um modelo normativo de direito que preza pela estrita legalidade, onde, no plano político, tem como finalidade maximizar a liberdade e minimizar a violência, consequentemente, acarretar no plano jurídico a vinculação do exercício do poder punitivo do estado a preceitos garantidores de direitos individuais[7].
O período de concepção de nossos códigos foi marcado pela ideia de eficácia da lei e periculosidade ou temibilidade dos acusados, que seriam previamente considerados criminosos[8]. Nessa moldura, a criminologia nos auxilia a compreender que, as diferenças sociais, seriam responsáveis por identificar características pessoais que definissem não criminosos e criminosos[9]. Assim, uma evolução natural da sociedade e de seus integrantes a dividiria, de cujo resultado seria uma classe de pessoas que representariam os criminosos como um fracasso evolutivo, seres carentes de honestidade, miseráveis moral e materialmente, logo, inferiores. Em contrapartida, a outra classe, os “não criminosos”, naturalmente superiores, constituída por pessoas honestas, de senso moral elevado, detentoras de condições favoráveis de existência social e material[10]. Essa é a ideia que permeia os códigos elaborados à época, e que, infelizmente, ainda está em vigor.
O principal desafio é: adequar às técnicas legislativas e, principalmente, as judiciárias para que assegurem a efetivação dos direitos fundamentais descritos na Constituição, eis que, para além da elaboração teórica de direitos e garantias, faz-se necessário o desenvolvimento de uma prática processual que corresponda ao formulado[11]. Transcende a própria questão jurídica por se tratar de uma constatação fática, em que as instituições públicas demonstram sua real evolução democrática no exercício do poder, garantindo ou violando direitos[12].
Inegável que nossa Constituição de 1988 veio como alicerce que fundou um Estado Democrático de Direito, mesmo diante de várias forças com interesses distintos, conseguiu consolidar premissas democráticas que, até hoje, apesar de descritas com força vinculativa, percebe-se tamanha dificuldade de implementação prática das garantias dos direitos descritos. Dessa forma, faz-se extremamente necessária a compreensão do que se entende por estado democrático e estado de direito.
Comumente, clama-se por uma premissa de que o povo é portador de um desígnio sacrossanto, que jamais se enganaria e seria sabedor de todas as coisas para o bem comum de uma sociedade. Uma retórica que permeia a narrativa dos consensos democráticos, de que a bondade está no povo, uma afirmação muito perigosa, basta contrastar com a imagem dos seus representantes, eleitos diretamente pelo mesmo voto[13].
A ‘democracia’ refere-se a um regime político que consente com o desenvolvimento pacífico dos conflitos com a ideia de que é através desses conflitos que ocorrem as transformações sociais e institucionais, sempre prezando, de forma igualitária, todos os pontos de vistas externos e internos da sociedade. Ou seja, por meio do dissenso e do conflito legitima-se a mudança, momento em que a democracia garante a luta pelos direitos, oferecendo espaços e proteção para o exercício dos direitos de liberdade e, esses, garantem à democracia instrumentos sociais que legitimam uma efetiva tutela para o desenvolvimento e realização dos pleitos. Contrapondo-se totalmente a regimes autoritários que primam pela intolerância a qualquer forma de manifestação contrária aos interesses governamentais.[14]
O fato de considerar que a liberdade, mesmo quando exercitada individualmente, equivale a uma forma de contrapoder, demonstra que a democracia é fruto de uma constante tensão entre poder político representativo, que se identifica com o estado; e poder social direto, que se identifica com o exercício da liberdade decorrente de sua condição permanente de oposição[15]. Isso não aponta para uma contradição entre democracia direta e representativa, pelo contrário, na ausência de uma democracia direta é a representativa, mediante um consenso vazio e passivo, que age[16]. Em contrapartida, na ausência de uma democracia representativa, é a direta que, fundada em si mesma, reproduz formas de representação que tendem a sucumbir a longo prazo por falhas das garantias jurídicas e políticas[17].
Repudiar qualquer uma das duas formas de democracia leva-nos ao abismo de retorno aos preceitos autoritários, pois, o descontentamento na democracia direta, quanto aos conflitos e dinâmicas sociais, afronta o conservadorismo; de outra parte, a insatisfação pelas formas de democracia representativa remete ao desprezo pelas garantias jurídicas, como se um sistema social que se auto-alimenta fosse eficaz, desprezando, assim, as concepções de estado[18].
Sustentar a tese da democracia constitucional, em primeiro lugar, é romper com alguns dos pressupostos históricos que caracterizaram a ideia de democracia, como se fosse o auge de um ‘governo do povo’, na medida em que esse mesmo povo, por sua vez, assumiria organicamente a posição de um pseudo-macro sujeito, como um corpo moral e coletivo, que possuiria uma vontade homogênea. Na verdade, falar em democracia, como governo do povo, que se julga correto, deve ser entendida, na medida em que, se reconhece a soberania popular, assumindo-se como a liberdade positiva do povo, de não ser sujeito a outras decisões, a não ser sobre aquelas estipuladas por si mesmo[19].
A vontade da maioria encontra na democracia constitucional a impossibilidade de deliberar sobre leis constitucionais que conferem direitos fundamentais e não pertencem ao povo – como macro sujeito dotado de vontade unitária -, mas pertencem ao povo – enquanto sujeito coletivo -, cujos componentes estão unidos somente pela titularidade das mesmas modalidades constituintes ou expectativas constitucionalmente constituídas, o que supõe a igualdade em direitos, sobretudo, aqueles ditos fundamentais, pertencentes a todos os indivíduos que compõem o povo e que podem ser envergados, inclusive, contra as decisões tomadas pela representação majoritária. Isso é dizer que: se existe a unidade do povo, é aquela, e somente aquela, de igual titularidade em direitos[20].
Nesse sentido, para se falar em democracia constitucional, a soberania popular apresenta-se mediante duas vertentes, quais sejam: negativo e positivo. Pelo sentido negativo, a soberania não pertence aos representantes ou qualquer pessoa ou grupo de pessoas e, sim, aos sujeitos individuais que compõem o povo; do lado oposto, no sentido positivo, tais sujeitos são detentores de poderes e contrapoderes, isto é, de direitos fundamentais – direitos individuais que dizem respeito universalmente a todos os seres humanos, enquanto dotados do status de pessoas, compreendidos como fragmentos da soberania popular -, cuja violação, além de ser um atentado contra a pessoa que deles é titular, é uma violação à própria soberania popular[21].
De forma clara e objetiva Alfredo Copetti Neto[22], com base no garantismo elaborado por Ferrajoli, diz que:
Desse modo, uma redefinição da soberania popular redireciona o elo entre democracia e povo, o que consequentemente estabelece que as decisões da maioria, como vontade do povo, não são suficientes, embora necessárias, à definição de democracia; isso quer dizer que um sistema, para que possa ser democrático, deve limitar e vincular todos os poderes, inclusive o poder da maioria, haja vista que é o poder de todos – como soberania popular – que forma a democracia, da qual os direitos fundamentais estabelecem vínculos substanciais, contradizendo a tese clássica que determina a democracia como um método, garantido, evidentemente, pelo sufrágio universal e pelo princípio de maioria.
A complexidade das situações, por outro lado, permitiu e permite um jogo ideológico sem tamanho e um contexto que admite manipulações das mais variadas, tornando difícil a decisão que conduz ao lado do qual se deve ficar ou entender, mas, na verdade, a democracia, em resumo, não seria o povo como um macro sujeito, dotado de vontade homogênea, mas é a soma de indivíduos dotados de suas particularidades, titulares de direitos e dependentes de proteção.
Talvez agora, esteja mais nítida a afirmação feita na introdução deste ensaio onde afirmamos que as condições epistêmicas de nossas perguntas estão inscritas no avesso dos conceitos que utilizamos para lhes dar resposta. De um lado uma Constituição democrática, que tem como premissa a garantia de direitos e a contenção do exercício do poder estatal, de outro uma legislação processual penal autoritária calcada na restrição de direitos e no uso ilimitado do exercício do poder.
Os direitos individuais, alçados a uma posição protetiva de destaque, não podem sucumbir frente a uma legislação constitucionalmente incompatível. Políticas públicas devem prezar pela proteção da individualidade, e isso, é essência para manutenção de estado democrático de direito.
[1] BIZZOTTO, Alexandre. Inversão ideológica do discurso garantista: a subversão da finalidade das normais constitucionais de conteúdo limitativo para a ampliação do sistema penal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009, p. 205. “Também é o que ocorre na inversão ideológica do discurso garantista. Através da interpretação de institutos constitucionais, há a subversão das finalidades das normas constitucionais de conteúdo garantidos com a fática ampliação do sistema penal, permitindo-se a abertura de caminhos para facilitar a criminalização secundária. São utilizados fundamentos que deveriam servir para limitar o Estado Penal com o resultado de ampliação da atuação deste. Com a inversão ideológica, os postulados do Estado Democrático de Direito são manipulados para permitir, sob a proteção da formalidade do discurso garantista, a concretização de violações penais aos direitos fundamentais, sob a influência de conceitos gerados pela ideologia da defesa social”.
[2] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 22-23. SANTOS, Bartira Macedo Miranda; RIBEIRO, Luis Gustavo Gonçalves; CASTRO, Matheus Felipe. Direito Penal e Constituição. XXIV Congresso Nacional do CMPEDI. UFMG/FUMEC/Dom Helder Câmara. Florianópolis: CONPEDI, 2015. “Partindo dessa visão, a Criminologia Crítica procurou investigar quais seriam as razões para que tal rotulação ocorre-se, passando a explicar tais fenômenos a partir da análise econômica das sociedades, apontando a seletividade do sistema penal como uma variável estrutural do empreendimento capitalista”.
[3] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. Tradução: ZOMER, Ana Paula; CHOUKR, Fauzi Hassan; TAVARES, Juarez; GOMES, Luiz Flávio. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 752.
[4] FERRAJOLI, 2002, p. 683.
[5] MARTINS, Rui Cunha. O Ponto Cego do Direito. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2010, p. 92.
[6] FERRAJOLI, 2002, 683.
[7] FERRAJOLI, 2002, 683.
[8] BECKER, Outsiders: Studies in the Sociology of Deviance. New York, Free Press, 1963, p. 8.
[9] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à Sociologia do Direito Penal. Tradução: Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2002.
[10] RAUTER, Cristina. Criminologia e Subjetividade no Brasil. Instituto Carioca de Criminologia. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003, p. 35-36.
[11] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 8. ed. São Paulo: Livraria do Advogado, 2007.
[12] FERRAJOLI, 2002, p.752.
[13] DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni. Democracia Constitucional: um paradoxo? Um diálogo, ainda que breve, com Luhmann, Habermas e Derrida. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/democracia-constitucional-2/>. Acesso em: 05 mar. 2017. “O que é democracia? Nas tradições da teoria política, democracia não é aquela forma de governo cujas decisões são tomadas pela maioria? Todavia, mesmo onde uma maioria governa, a minoria não teria direitos assegurados? Se a resposta for sim, como assegurar direitos às minorias, em face das decisões da maioria governante? Atribuindo-se a uma instituição, ao judiciário, por exemplo, um poder contramajoritário? Assim, todas as vezes que a maioria lesasse direitos das minorias, o judiciário estaria autorizado a proteger esses direitos. Mas quem autorizaria, numa democracia, o judiciário, que sequer é eleito, a controlar as decisões majoritárias que supostamente violariam direitos das minorias? Resposta: A constituição”.
[14] FERRAJOLI, 2002, p. 757.
[15] FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantías. La lei del más débil. Tradução: Andrés Ibáñez e Andrea Greppi. Madrid: Editorial Trotta, 1999.
[16] NETO, Alfredo Copetti. A Democracia Constitucional sob o olhar do garantismo jurídico. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 44.
[17] FERRAJOLI, 2002, 757.
[18] FERRAJOLI, 2002, pp.757-758.
[19] NETO, 2016, p. 47-48.
[20] NETO, 2016, p. 48.
[21] NETO, 2016, p. 48-49.
[22] NETO, 2016, p. 49.